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‘Financiamento público elevaria número de mulheres na política’ (Professora da UNB: Flávia Biroli)

Para professora da UnB, Dilma não priorizou "agenda de direitos das mulheres"

Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciência Política da UnB (Universidade de Brasília), diz que o financiamento público de campanhas políticas aumentaria o “o número de mulheres candidatas e eleitas”. Segunda ela, estabelecer cotas no Congresso seria “um passo importante” para estimular a igualdade de gênero no Brasil.
Biroli afirma que temas ligados aos direitos das mulheres, como a demanda por creches ou projetos que flexibilizam as condições para realização do aborto, não ganham relevância na agenda do Legislativo. Uma maior presença feminina no Parlamento daria força a esses temas.
Segundo Biroli, os partidos políticos apostam menos nas candidaturas das mulheres. Ela defende alterações no sistema de financiamento de campanhas eleitorais para garantir maior presença feminina na política. “O financiamento público de campanhas, que reduz a interferência das empresas e a necessidade de contar com posições políticas preexistentes, (…) também é importante para aumentar o número de mulheres candidatas e eleitas”, avalia.
“Do modo como a política é realizada, os direitos das mulheres são definidos por uma maioria de homens. (…) A autonomia individual e a autonomia coletiva das mulheres são comprometidas: elas vivem sob regras que são definidas na sua ausência ou quase ausência, suas lutas têm maior dificuldade de ganhar voz e peso, a própria definição política dos seus interesses é comprometida.”
Biroli afirma que é “simbólica” a presença de uma mulher na Presidência da República, mas critica a condução de políticas públicas voltadas para a população feminina no governo Dilma Rousseff.
“A agenda das mulheres tem sido moeda de troca para garantir apoio dos grupos religiosos, em especial da bancada evangélica na Câmara. Recentemente, a fusão entre as secretarias de Políticas para Mulheres, para Igualdade Racial e de Direitos Humanos foi um passo atrás na atribuição política de relevância a essas agendas”, diz.
Perguntada sobre a legalização do aborto, Biroli afirma que o assunto é “uma questão de direito individual e de saúde pública”. Na avaliação da professora da UnB, “a recusa ao direito ao aborto compromete a cidadania das mulheres e sua integridade física”. Segundo ela, o tema não avança no Brasil devido aos obstáculos criados pela atuação das igrejas católica e neopentecostais.
Autora do livro “Feminismo na Política”, ao lado do professor Luis Felipe Miguel, Biroli diz que a falta de creches e escolas públicas integrais é “um elemento central” na desigualdade salarial por gênero. No Brasil, a diferença da remuneração entre homens e mulheres em 2013 foi de 25,8%. O país ocupa o 124° lugar em um ranking de igualdade salarial organizado pelo Fórum Econômico Mundial com 142 países.
“A igualdade [salarial] depende de mudanças estruturais, capazes de colocar o cuidado e a vida cotidiana no centro das preocupações, deslocando o imperativo do lucro e a ideia de que o que rege a vida e o acesso a dignidade são forças impessoais de mercado”, diz.
Confira a entrevista:
1 – Na sua avaliação, quais são as principais questões que o Brasil deve enfrentar para estabelecer a igualdade entre os gêneros?
Algumas questões me parecem fundamentais para garantir direitos iguais para mulheres e homens. Primeiro, precisamos consolidar a laicidade do Estado. Sem isso, pode-se mobilizar crenças na esfera política de modo que subtraiam direitos. Isso ocorre hoje na legislação relativa ao direito ao aborto _que no Brasil é criminalizado, com a exceção de risco de morte para as mulheres, estupro e anencefalia fetal. Mesmo essas exceções estão em risco hoje, uma vez que há projetos de lei em tramitação que procuram retirar das mulheres o controle sobre seu corpo e sua capacidade reprodutiva nesses casos. As propostas de lei relativas à família, como o Estatuto da Família em tramitação na Câmara dos Deputados, também rompem com a laicidade e retiram direitos de mulheres, homens e crianças _nesse caso, o direito de constituir família e de não ser prejudicada e discriminada pela sua forma de vida. Crenças privadas não podem justificar a subtração de direitos. Quando isso se dá, estamos na contramão da construção de uma sociedade democrática.
Também precisamos avançar em políticas que permitam superar a divisão sexual do trabalho, que é a base das desvantagens das mulheres no trabalho e dos obstáculos para sua participação política. A divisão sexual do trabalho corresponde à responsabilização desigual de mulheres e homens pelo trabalho cotidiano doméstico e de cuidado. Para as mulheres, ela impõe dificuldades na acomodação entre trabalho e vida pessoal. É importante compreender que o rearranjo privado das responsabilidades _com homens que assumem a vida cotidiana e o cuidado de crianças e idosos tanto quanto as mulheres, rompendo com a ideia de que isso cabe a elas por serem mulheres_ é importante, mas está longe de resolver um problema estrutural. Precisamos de políticas públicas que permitam que a responsabilidade pela infância seja compartilhada. Falo de creches e escolas públicas de qualidade em período integral; de leis que redefinam o acesso a licenças. A socialização de gênero incide sobre as ambições. Uma vez que expectativas e julgamentos são diferentes, calcados na divisão sexual do trabalho e na definição da maternidade como um ideal que definiria o valor das mulheres, isso demarcaria desvios.
Entendo que políticas para a igualdade de gênero garantem os direitos individuais, mas vão na contramão da privatização e mercantilização do cuidado das crianças. Vão na contramão das formas tradicionais de responsabilização da família, algo que na prática significa a responsabilização das mulheres e sua culpabilização quanto às condições para o cuidado das crianças, que estão longe de ser adequadas ou justas. As mulheres mais pobres são as mais afetadas, uma vez que as mais ricas podem contratar serviços que reduzem sua carga de trabalho, como empregadas domésticas e babás.
Em terceiro lugar, precisamos continuar avançando no enfrentamento da violência contra as mulheres. O sexismo permanece como o principal fator na reprodução dessa violência. Ele é reforçado e ganha materialidade quando não combatemos os fatores anteriores. A garantia do direito das mulheres ao seu corpo é fundamental para que sua integridade física seja vista como tão relevante quanto à dos homens. Quando se recusa a elas o controle sobre seus corpos, é reforçado o entendimento de que outros podem ter esse controle. Ao mesmo tempo, sua posição na divisão sexual do trabalho torna mais difícil deixar relações violentas e abusivas.
Para além desses fatores, que considero estruturais, é preciso combater a violência dando efetividade à legislação atual, que é uma grande conquista dos movimentos feministas. Penso na Lei Maria da Penha, em especial, por meio da punição aos agressores, da educação para a igualdade de gênero e respeito aos direitos das mulheres e da proteção às mulheres em situação de risco.
Por fim, precisamos garantir o acesso de mais mulheres à política, para que sua posição social, suas experiências, suas perspectivas sejam parte da construção da agenda pública, do debate sobre direitos, da definição de políticas e da sua implementação. Para isso, precisamos garantir a presença das mulheres no Legislativo, por meio de políticas afirmativas eficazes. A paridade na direção de sindicatos e partidos é uma medida de enorme relevância, pois garante o acesso das mulheres a posições que permitem controlar recursos importantes da luta política e o exercício de atividades que são importantes na construção das carreiras políticas. O financiamento público de campanhas é importante para aumentar o número de mulheres candidatas e eleitas. Ele reduziria a interferência das empresas e a necessidade de contar com posições políticas preexistentes, a partir das quais os recursos são negociados; e a moeda, como se sabe, é a influência também .
2 – O Brasil ficou em 124° lugar em um ranking de igualdade de salários por gênero organizado pelo Fórum Econômico Mundial com 142 países. Ficamos na frente apenas do Chile no grupo de países da América Latina e do Caribe. Quais fatores explicam uma posição tão baixa neste ranking internacional?
Um fator isoladamente não explica sozinho essa desigualdade, mas entendo que a falta de creches e escolas públicas integrais de qualidade é um elemento central. A socialização de gênero, o sexismo no ambiente de trabalho e a grande presença das mulheres em ocupações menos valorizadas e mais precarizadas (que é decorrente da divisão sexual do trabalho, que não para na porta de casa), como o emprego doméstico, também se somam na produção desses padrões desiguais.
Um grande número de mulheres se profissionalizou e atua hoje nas profissões de maior status e renda, como a medicina, por exemplo. Nelas, continuam a ter renda média menor que os homens e a estar em menor presença nos cargos de maior poder e remuneração. A divisão sexual do trabalho é um fator, como dito anteriormente. Mas temos que compreender o que ocorre em ambientes que foram historicamente masculinos; isto é, as formas cotidianas, muitas vezes sutis, de barrar a ascensão das mulheres. Ao mesmo tempo, o acesso das mulheres mais ricas a essas profissões não redefiniu a posição da maioria _o trabalho precário e mal-remunerado de muitas mulheres é, frequentemente, o que permite que algumas tenham ocupações valorizadas e bem remuneradas sem abrir mão de ter filhos, por exemplo.
3 – Em junho deste ano, o IBGE apontou que a diferença da remuneração entre homens e mulheres no Brasil em 2013 foi de 25,8%. O que deve ser feito para que esse cenário seja alterado?
Políticas de Estado para que as mulheres possam trabalhar enquanto seus filhos permaneçam cuidados em creches e escolas públicas, assim como políticas que ampliem as exigência relativas a creches de empresas privadas. Políticas educativas favoráveis à igualdade de gênero, implementadas nas escolas e nos ambientes de trabalho, algo que vem sendo refutado pelos grupos religiosos ultraconservadores que se dizem favoráveis à família, mas favorecem ambientes injustos e mais violentos. Políticas que restrinjam a jornada de trabalho, permitindo acomodar as necessidades cotidianas de cuidado e da vida doméstica ao trabalho. Políticas que permitam o cuidado com as crianças e as pessoas doentes sem prejudicar trabalhadoras e trabalhadores, por meio de licenças. Vale lembrar que a igualdade depende de mudanças estruturais, capazes de colocar o cuidado e a vida cotidiana no centro das preocupações, deslocando o imperativo do lucro e a ideia de que o que rege a vida e o acesso a dignidade são forças impessoais de mercado.
4 – De acordo com o Censo de 2010 do IBGE, 51% dos habitantes do Brasil são mulheres. Há, no entanto, uma sub-representação desta população no Congresso Nacional. Nas eleições do ano passado, foram eleitas apenas 51 deputadas e cinco senadoras. Por que ainda é baixa a participação das mulheres na política?
Como disse, a divisão sexual do trabalho torna o acesso a tempo, recursos e redes de contato menor para mulheres do que para homens. A socialização de gênero produz ambições, expectativas e julgamentos diferenciados. Mas acho importante destacar também que a política tem sido historicamente masculina. São os homens quem controlam os partidos. São eles a maioria em todos os espaços em que a política institucional se realiza. As mulheres fazem política a despeito das desvantagens que a elas se impõem, mas têm maiores dificuldades de construir candidaturas e de ser eleitas. Quando eleitas, têm maiores dificuldades de permanecer. Os partidos apostam menos nas suas candidaturas. Seu acesso a financiamento de campanha é menor. Daí a importância de mudanças no sistema de financiamento. Nas condições atuais, o financiamento privado, que é antagônico à democracia como ideal igualitário, é mais prejudicial para quem está em posição socialmente desvantajosa, como as mulheres, os trabalhadores, a população negra.
5 – A lei exige que 30% dos candidatos de cada partido sejam do sexo feminino. Neste ano, a Câmara dos Deputados rejeitou uma proposta que reservava 10% das vagas do Congresso Nacional para mulheres. Um cota deste tipo deveria ser criada no Brasil? Que mudanças teríamos na política com mais mulheres no poder?
As cotas no Congresso, em vez de entre as candidaturas, seriam um passo muito importante. A presença de mais mulheres não garante mudanças mesmo na agenda relativa às mulheres. Sua ausência, por outro lado, expõe os limites da democracia. As pessoas não têm acesso ou são excluídas da política representativa aleatoriamente. Há padrões sistemáticos de inclusão/exclusão, e um deles corresponde ao gênero. Como as mulheres têm posição social distinta da dos homens, isso significa a exclusão de experiências, pontos de vista, interesses que não estão contidos nos deles. Do modo como a política é realizada, os direitos das mulheres são definidos por uma maioria de homens, o que significa que algumas questões não ganham relevância ou têm um custo enorme para se tornar parte da agenda pública. Pense, por exemplo na violência contra as mulheres, nas creches, no direito ao aborto. A autonomia individual e a autonomia coletiva das mulheres são comprometidas: elas vivem sob regras que são definidas na sua ausência ou quase ausência, suas lutas têm maior dificuldade de ganhar voz e peso, a própria definição política dos seus interesses é comprometida.
6 – A legalização do aborto é uma das principais pautas do movimento feminista. A prática já é permitida em países como Alemanha, Canadá, França. No Uruguai, onde o aborto foi legalizado em 2012, houve queda no número de mortes maternas e também de realização de abortos. Quais são os argumentos mais consistentes de quem é a favor a legalização do aborto?
A interrupção da gravidez é, ao mesmo tempo, uma questão de direito individual e de saúde pública. A recusa ao direito ao aborto compromete a cidadania das mulheres e sua integridade física. Sua cidadania é comprometida pelo fato de que o controle sobre si, sobre seu corpo e sua vida lhe é recusado. Sua integridade física é comprometida porque o aborto é uma prática corrente e, como mostram muitas pesquisas, foi e continua sendo em diferentes sociedades. O que muda quando há direito ao aborto é que as mulheres podem fazer essa escolha em condições seguras. A maternidade não pode ser compulsória sem que se comprometa os direitos das mulheres, sua condição de cidadãs.
7 – A interrupção da gravidez só é possível no Brasil em caso de estupro, quando há risco de morte da mãe ou se o feto é anencéfalo. A OMS (Organização Mundial da Saúde) calcula que, a cada dois dias, uma mulher brasileira morre realizando um aborto clandestino. E, segundo pesquisa do IBGE divulgada neste ano, mais de 1,1 milhão de brasileiras realizaram aborto em 2013. Por que o debate a respeito do aborto no Brasil não tem avançado?
Os obstáculos para o acesso a esse direito vêm da atuação das igrejas, historicamente a Católica. Hoje, a Igreja Católica tem atuação conjunta com as neopentecostais _embora existam diferenças e matizes entre essas últimas e, claro, entre as pessoas que são religiosas. Os parlamentares que hoje defendem retrocessos na legislação atual nunca defenderam os direitos das crianças, muitos deles foram contra a Lei Menino Bernardo ou tinham ressalvas a ela por entender que os pais têm direito a castigar fisicamente seus filhos. Tratam-se do controle sobre as mulheres e da naturalização da violência. O que dizer sobre a defesa de alguns parlamentares, como Eduardo Cunha, contra o direito ao aborto em casos de estupro?
8 – Neste ano foi sancionada uma lei que transformou o feminicídio em crime hediondo. Com isso, aumentou a punição de quem é acusado de assassinar uma mulher motivado por questão de gênero: a pena deste tipo de homicídio qualificado passa a ser de 12 a 30 anos. Só uma mudança na lei é suficiente para ajudar a diminuir os casos de violência contra a mulher?
A mudança na lei precisa ser acompanhada de políticas de combate à violência, de proteção às mulheres em situação de risco e de educação para a igualdade de gênero desde a infância.
9 – Qual é a sua avaliação sobre o governo Dilma Rousseff? Qual sua impressão pessoal a respeito da presidente?

A presença de uma mulher na Presidência da República tem importância simbólica. O recado dado de maneira difusa é que mulheres podem estar nessa posição. No momento atual, muitas das reações violentas da oposição a Dilma se expressam de maneira sexista, o que é lamentável. Como mulher presidente, no entanto, Dilma Rousseff não priorizou avanços na agenda de direitos das mulheres. A Lei do Feminicídio é importante, do meu ponto de vista, assim como é fundamental a PEC que iguala o direito das domésticas aos de outras trabalhadoras, mas grosso modo paramos por aí. A agenda das mulheres tem sido moeda de troca para garantir apoio dos grupos religiosos, em especial da bancada evangélica na Câmara. Recentemente, a fusão entre as secretarias de Políticas para Mulheres, para Igualdade Racial e de Direitos Humanos foi um passo atrás na atribuição política de relevância a essas agendas.

Fonte: Blog do Kennedy - Isabela Horta - Brasília 

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