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Tenho sim, uma "Dama" na minha vida, com todo meu carinho: Asta-Rose Alcaide, a dama da ópera

           

             

Os quadros bordados à mão pela mãe, as preciosidades russas, 
as aquarelas, os retratos. Os abajures de Sintra nas mesinhas, as fotografias das óperas. Os castiçais de uma catedral portuguesa. As partituras assinadaspor artistas de renome. Tantas condecorações. E os livros, muitos, em todas as línguas. A casa de Asta-Rose Alcaide não é apenas o memorial de uma vida que se fez pródiga em conhecer pessoas e lugares interessantes. "As paredes me consolam", diz.

A função
das coisas naquele apartamento da Asa Sul não é servir à ostentação. Tudoaquilo tem papel de companhia. O marido se foi há muito; os parentes todos jámorreram. Aos 93 anos, Asta-Rose está só. Esta é uma verdade incontestável, a ponto de ela repetir algumas vezes, com total desprendimento, que preferia já ter ido embora. Que graça tem a vida sem poder usar as sapatilhas de pontas de bailarina? Se o corpo não responde às vontades? Se todos se foram?

Apesar do reconhecimento de que viver quase um século não é "brincadeira", Asta-Rose não faz da solidão um lamento bobo, um sofrer sem trégua. Os livros, a música, a escrita ajudam a compor uma rotina em que ficar na cama não é opção. Todos os dias, ela se levanta, passeia, faz compras, escreve cartas, ouve música, vistoria o apartamento. Faz carinho no acervo, que é o motivo central de um só pensamento intermitente: o que fazer com essas coisas todas? Mandar para Portugal, para um teatro onde já existem algumas coisas do marido, o tenor Tomás Alcaide? Deixar numa sala do Teatro Nacional, em Brasília?

A vaidade
continua como fiel companheira. É assim desde a infância, pautada por regras de comportamento ditadas pelo pai e pela mãe, criados em escolas europeias, na Alemanha e na Suíça. Os cabelos, marca registrada, ainda muito arrumados, imponentes; o lencinho, sempre amarrado no pescoço. O sonho de estudar na Europa foi sufocado por uma guerra, mas o desejo de aprender línguas foi saciado. Fala seis idiomas e escreve também. Tantas referências influenciam no sotaque, no jogo de palavras. A ponto de a origem brasileira — ela é de Joinville (SC) — não ser evidente.

Asta-Rose comporta-se como uma grande dama. Aprendeu tudo o que se propôs: da dança aos instrumentos musicais. Recebeu a equipe do Correio com extrema gratidão. Durante duas horas, conversou sem trégua, sem um gole d’água, sobre vida, saudades, velhice, morte, música, guerra, amor ao marido. As traições damemória foram compensadas pelo vasto conhecimento acumulado. Pouco falou sobre a grande contribuição a Brasília. Foi ela que trouxe a ópera para a cidade, fez audições, deu aulas, proporcionou grandes momentos à cultura brasiliense. Pena que a modéstia não lhe deixa dizer a verdade.

O BALÉ
"Eu sempre estudei balé. Desde criança, eu tinha mania de dança. Quando terminei a escola alemã em Joinville, fui para São Paulo. Lá, eu comecei a levar tão a sério o balé que fui logo admitida no Teatro Municipal de São Paulo. Passei num concurso e fui uma das três principais bailarinas de São Paulo. Eu tinha a impressão de que não podia viver sem balé. Hoje, estou velha e gorda (risos). Balé não é mais uma coisa recomendada."

 O AMOR
"Eu queria muito ir estudar na Europa, mas veio a guerra e complicou a nossa vida. Muitos artistas e muitos cantores começaram a vir se apresentar na América do Sul. Em Buenos Aires, o teatro era muito importante. Tanto o Municipal do Rio quanto o de São Paulo estavam muito ativos, porque os cantores de ópera vinham da Europa contratados. Meu marido veio assim, chegou com outros cantores e, como eu era do corpo de baile do Municipal, nós nos conhecemos. Foi uma coisa imediata, embora tivéssemos uma diferença grande de idade. Então, foi contratado para cantar em Buenos Aires e queria se casar comigo para irmos, já casados, para lá. Fomos a Joinville avisar aos meus pais. Eu me casei lá e fui com ele. Aproveitei, enquanto ele cantava, para aprender balé com uma senhora que tinha fugido da Alemanha na guerra e era muito conhecida. Por dois anos, melhorei muito o balé. Ele era uma pessoa muito boa, um artista, um homem muito bonito, muito elegante, cantava muito bem, falava muitas línguas. Teve muito sucesso na Europa, cantou nos grandes teatros de Paris, em todos os grandes teatros da Europa. Era, além disso, uma pessoa sempre preocupada em estudar, cantar melhor. Nós nos dávamos muito bem, éramos muito felizes. "

A ÓPERA
"Comecei a me interessar por ópera quando conheci meu marido. Antes, tudo era balé. Eu gosto muito ainda e a gente descobre sempre coisas novas, é extraordinário. Se são óperas bem cantadas, bem tocadas pela orquestra, se fazem sentido, eu gosto. Uma Bohème é uma delícia, eu posso ver e ouvir todos os dias, nunca mecanso. Um Wagner também. Algumas eu gosto mais, outras não gosto nada, são chatas."

Por:  Cristine Gentil , Luís Tajes , Flávia Duarte, Correio Braziliense  - Foto: Luis Tajes - CB.D.A.Press  


                                    

1 Comentários

  1. Muito lindo este trabalho de vocês. A câmera vai se aproximando com gentileza, com respeito, até chegar aos olhos, à alma, e então temos a permissão de vislumbar os contornos do Mistério do qual ela nos conta algo - o tempo, a morte, a partida na qual não se leva nada... Muito lindo mesmo!

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