É impressionante, a cada semana surge
em Brasília uma proposta estapafúrdia precisamente de quem deveria zelar pelos
interesses da cidade. Os brasilienses se veem constrangidos a defender a obra
de Athos Bulcão, o Touring Club ou a qualidade do meio ambiente no Sudoeste de
ações predatórias ou de descaso. Estamos em pleno faroeste caboclo. Quando a
gente imagina que chegou ao limite do absurdo, irrompe novo despautério.
A última pérola é de autoria do líder do governo na Câmara Legislativa,
Júlio César (PRB), que propõe vender o terreno onde funciona a Aruc (Associação
Recreativa Unidos do Cruzeiro). Segundo informa a coluna Eixo Capital, em
pronunciamento na semana passada, o distrital argumentou que grande parte da
área está ociosa e o negócio poderia render milhões para o GDF. Ele não sabe
que só a Aruc e o Morro da Capelinha são tombados como Patrimônio Cultural
Imaterial de Brasília.
Primeiro, é preciso informar aos desavisados que aquele chão da Aruc é
sagrado. Por lá, pisaram Cartola, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Clara
Nunes, Xangô da Mangueira e Zé Keti, entre outros, em shows memoráveis, nos
anos 1970 e 1980. Eles plantaram a semente do samba em Brasília, que vingou e
hoje é um dos motivos de orgulho da cidade, com os novos talentos (Renata
Jambeiro, Breno Alves, Vinicius de Oliveira, entre outros) que brilham em plena
Lapa, no Rio de Janeiro, o templo do samba.
Em segundo lugar, a alegada ociosidade é fruto da inércia do poder
público. O contrato da Aruc não foi renovado há muito tempo e isso impede a
escola de fazer benfeitorias, receber alvará de construção ou promover eventos
sociais de integração da comunidade. O próprio Ministério Público recomendou
que se regularizasse a situação, mas cada governo empurra a questão com a
barriga.
Ao longo do tempo, o trabalho da Aruc ganhou um peso na vida comunitária
em um ambiente de cerceamento da vida política, promovido pelo regime militar
de 1964. O Cruzeiro era esquecido, não tinha administração, infraestrutura,
postos de saúde. O mato crescia para todos os lados. Nas décadas de 1970 e
1980, a Aruc se tornou porta-voz do simpático bairro.
Em 1977, com a redemocratização do país, um grupo de jornalistas resolveu
criar a Sociedade Armorial Patafísica Rusticana Pacotão. “Vamos para a Aruc que
o Sabino nos apoia.” Sabino, o então diretor da agremiação, adorou a ideia e
colocou a bateria da Aruc a serviço do primeiro desfile anárquico do Pacotão,
na contramão das avenidas W3 Sul e Norte.
Tenho uma ligação sentimental com a Aruc também pelo fato de que, ao se
submeter a uma delicada cirurgia, o meu amigo, o jornalista e poeta Reynaldo
Jardim, reuniu a família e avisou: “Vai dar tudo certo. Mas, se não der, chamem
a bateria da Aruc e façam um samba de arromba”.
Reynaldo morreu, mas, no sarau de sétimo dia em sua homenagem, lá estava
a bateria da Aruc para abrir o caminho à subida do poeta rumo aos céus de
Brasília: “Quero morrer numa batucada de bamba/Na cadência bonita do samba”. É
essa a instituição que Sua Excelência quer transformar em sem-teto. Como diz o
samba de Noel Rosa: “Meu Deus do céu, que palpite infeliz...”
Por: Severino Francisco - editor
de Cultura e colunista do Correio Braziliense – Foto/Ilustração:
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