Coordenador da força-tarefa do Ministério Público
na Lava-Jato aponta a participação da sociedade como essencial para vencer os
atos ilícitos e indica que a operação planeja avançar sobre recursos e empresas
no exterior
Coordenador da força-tarefa do Ministério Público
Federal (MPF) que atua na Operação Lava-Jato, responsável por investigar o
megaesquema de corrupção na Petrobras, o procurador Deltan Dallagnol é enfático
ao apontar a necessidade do engajamento da população no combate à corrupção.
Ele aponta 2015 como um ano de evolução na luta contra os atos ilícitos diante
de grandes operações, sobretudo porque houve uma conscientização maior da
sociedade sobre o problema.
O procurador afirma que as leis no Brasil fazem do
sistema judiciário “disfuncional” e aponta mudanças necessárias,
principalmente, para acelerar o trâmite de processos e revisar o sistema
prescricional de penas, a fim de evitar a impunidade. Para isso, ele defende
que as alterações sejam propostas por meio de projetos de lei de iniciativa
popular. “A corrupção é um mal devastador. Nós devemos encarar esse monstro
como ele é, enfrentá-lo e derrubá-lo”, diz.
Na avaliação de Dallagnol, a Operação Lava-Jato foi
um ponto fora da curva no combate à corrupção por inaugurar um modelo até então
pouco conhecido no país, de colaboração dos acusados, por meio de delações
premiadas. Para 2016, a previsão é que seja triplicado o número de denúncias.
Até aqui, 179 pessoas foram alvo de acusações criminais pela operação. A
expectativa é de um ano de muito trabalho, com a revelação do envolvimento de
mais empresas estrangeiras e brasileiras com contas no exterior.
Como o
senhor avalia 2015 do ponto de vista do combate à corrupção?
Foi o ano em que mais se evoluiu no combate à corrupção no Brasil. Em
primeiro lugar, por causa das grandes operações. E, em segundo lugar, talvez
mais importante, porque a população passou a se engajar na busca de soluções.
Essas operações grandes tratam de tumores, mas o problema é que o sistema é
cancerígeno. Enquanto nós não mudarmos as condições que propiciam a corrupção,
nós continuaremos a ter outros casos no futuro. De nada adianta tratarmos casos
específicos de corrupção, se nós não mudarmos o que favorece a corrupção no
Brasil, entre os que eu destacaria a impunidade. Brechas na lei que fazem do
Brasil o paraíso da impunidade para os corruptos.
Por
exemplo?
O modo como funciona o nosso sistema prescricional que, aliado à demora
dos processos na Justiça, transforma a Justiça penal em uma máquina de
impunidade. A prescrição é uma forma de cancelamento do crime, ou do caso
penal, como se ele nunca tivesse acontecido, ainda que o réu tenha sido
condenado por existirem amplas provas, tão somente porque o caso demorou muito
tempo na Justiça, ainda que essa demora decorra exclusivamente do
congestionamento do Judiciário, ou seja, por causa da lentidão, a sociedade é
punida, não o criminoso. E isso acontece duas vezes: quando o crime é cometido
e quando é selada a impunidade do criminoso.
A que o
senhor atribui essa demora da Justiça? É preciso revisar o sistema?
É preciso revisar o sistema
recursal. O direito à defesa e a rapidez do processo são importantes para que
não se gere um clima de impunidade. Justiça tardia é justiça nenhuma. Além
disso, precisamos revisar nosso sistema prescricional para que a prescrição
aconteça apenas nos casos em que o Estado não se mexe, ou não se mexe de modo
adequado para punir alguém. Apenas quando a acusação não está buscando a
punição da pessoa. A ideia da prescrição foi gerada para isso. Para estabilizar
as relações em casos onde a parte autora não se mexe. Agora, o que acontece na
realidade é que a prescrição acontece mesmo quando a acusação faz tudo que está
a seu alcance para buscar a punição de um corrupto. Aconteceu na ação em que
foi acusado criminalmente Paulo Maluf; no caso do propinoduto de auditores da
receita estadual do Rio de Janeiro em que eles foram acusados de receber
propinas na Suíça superiores a US$ 30 milhões. A prescrição também atingiu
várias acusações no caso Banestado.
No caso
Luiz Estevão, o sistema judicial contribuiu para favorecer a impunidade?
Nesse ponto, tem que ser feito um elogio ao Correio, que tem feito o
acompanhamento. Como noticiou o jornal, no caso envolvendo Luiz Estevão, três
réus começaram a ser julgados no Tribunal Regional Federal da Terceira Região,
ou seja, no segundo grau. Nossa Justiça tem quatro graus. Só é possível
executar a pena em relação a um réu depois do julgamento do último recurso no
último desses quatro graus. O Brasil é o único país do mundo que tem quatro
graus. E, diferentemente dos outros países do mundo, você tem que esperar o
julgamento em todos os recursos, em todas as instâncias, para poder executar a
pena. Esse caso do Luiz Estevão começou diretamente na segunda etapa. Ainda
assim, embora ele tenha começado há mais de década, ele chegou no terceiro
grau, um grau acima, depois de muito tempo e após terem sido apresentados 76
recursos, por apenas três réus. O que se deve ponderar é que, em diversos casos
complexos, existe um número de réus ainda maior. O que permitiria um número de
recursos ainda maior. No caso da Lava-Jato, temos mais de 10 réus. A Operação é
uma exceção porque os réus acreditaram que seriam punidos. Isso fez com que
eles procurassem a delação como uma estratégia de defesa. Alavancou a
investigação.
No caso
de Luiz Estevão, tem um problema da demora da publicação do acórdão.
A grande questão é que o STF não
tem perfil célere, pelo modo como ele foi desenhado. O acúmulo de casos é
extraordinário. Você não tem como imprimir qualidade e celeridade quando tem um
volume gigantesco de casos a serem julgados. O Judiciário funciona como uma
pirâmide. O número de julgadores da primeira para a segunda instância diminui
drasticamente. Agora, o volume de casos não diminui na mesma proporção, em
forma de pirâmide.
Das
medidas propostas pelo MPF, quais o senhor citaria como mais urgentes?
Um dos autores que estudam a corrupção no Brasil aponta que é
necessário, para mudar esse quadro, que a população se envolva, que passe a
agir e a influenciar o Estado, que o exercício da cidadania do Brasil se torne
mais forte. Isso pode ocorrer de diferentes modos. Um deles é a fiscalização
das contas públicas, o que entidades vêm fazendo. Outro desses modos é a
propositura de projetos de lei de iniciativa popular. Eu destacaria dois: um é
o das 10 medidas contra a corrupção que foi originalmente sugerido à sociedade
pelo MPF e hoje é um projeto da sociedade; o outro é o projeto de reforma
política, que é do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, o mesmo
movimento que propôs a Ficha Limpa.
Dessas
medidas do MPF, quais são as mais urgentes?
É como perguntar para um pai qual filho ele prefere. Tem três frentes
principais: a primeira é a prevenção, evitar que a corrupção aconteça; a
segunda é trazer uma punição adequada para o crime de corrupção e fazer com que
a punição saia do papel dando um basta à impunidade; em terceiro lugar, criar
instrumentos para a recuperação satisfatória do dinheiro desviado. Na minha
percepção, todas são muito importantes. A ideia é fechar o cerco contra a
corrupção. Um estudo publicado pela FGV mostra que a probabilidade da punição
da corrupção no Brasil hoje é próxima a zero.
Qual é o
balanço do total desviado?
A própria Petrobras reconheceu o pagamento de propinas no montante de R$
6,2 bilhões. Mas quem paga propina não paga de graça, paga para obter uma
vantagem indevida, um benefício econômico que também é um prejuízo e sai do
bolso da sociedade. Existem diferentes estimativas em relação ao valor
desviado. Em relação apenas aos crimes das empresas cartelizadas no esquema da
Petrobras, o TCU estima que os desvios chegaram a R$ 29 bilhões e um laudo da
PF estima que os desvios podem ter chegado a R$ 42 bilhões. Até aqui,
recuperamos mais de R$ 2,8 bilhões.
Quais os
planos da operação para 2016?
Nosso compromisso é avançar buscando a criminalização de todos os
criminosos na medida das suas responsabilidades. Existem muitas acusações a
serem feitas em relação a pessoas que ainda não foram acusadas criminalmente. E
existem muitas acusações novas a serem feitas em relação a pessoas que já foram
acusadas criminalmente. Em primeira instância, foram acusadas criminalmente 1/3
das pessoas que provavelmente virão a ser acusadas. Um terço dos operadores
financeiros, um terço dos empresários, um terço dos agentes públicos. Além
disso, há uma perspectiva de avanço nas investigações em relação a empresas
estrangeiras e de recebimento de novas contas que estão sendo investigadas por
países estrangeiros, o que comprovará corrupção em relação a outros agentes.
Há muitas
empresas a serem apuradas?
Existem várias estrangeiras e muitas nacionais que ainda não foram alvo.
Existem alguns indícios que estamos amadurecendo. A grande questão nesse ponto,
na minha perspectiva, não é até onde nós vamos ou quanto mais será revelado. O
pulo do gato é respondermos à pergunta: já não se comprovou e apurou o
suficiente para percebermos que é necessário mudar as condições que favorecem a
corrupção no Brasil? O que tivemos até agora foi a reação de instituições como
Ministério Público, Receita, Polícia, TCU, Cade, no caso concreto, com o
suporte do Poder Judiciário.
O que o
senhor espera do combate à corrupção para o próximo ano?
É essencial que a sociedade se envolva no combate à corrupção, porque o
abuso do poder generalizado num esquema de corrupção de grande escala é o que
John Locke no passado chamou de tirania. Devemos ver a corrupção como o mal
intenso e extenso que ela é. A corrupção é um mal devastador. Nós devemos
encarar esse monstro como ele é, enfrentá-lo e derrubá-lo.
"Por causa da lentidão (da Justiça), a
sociedade é punida, não o criminoso. E isso acontece duas vezes: quando o crime
é cometido e quando é selada a impunidade do criminoso”
"É essencial que a sociedade se envolva no
combate à corrupção, porque o abuso do poder generalizado num esquema de
corrupção de grande escala é o que John Locke no passado chamou de tirania”
Fonte: Julia Chaib – Foto:
Evaristo Sá/AFP – Correio Brazilienase