Em sua primeira HQ, Thalija: Aventuras brasilienses
em busca da cidade oculta, Frederico Flósculo se inspirou em Alice no país das
maravilhas, de Lewis Carroll
Nas suas andanças por Brasília para decidir se
deveria ou não seguir a arquitetura, a mesma profissão de seus pais, a
adolescente Thalija acabou chegando ao Conic. Após atravessar um portal
localizado no Setor de Diversões Sul, ela seguiu pelos labirintos e pirâmides
encontrados no subterrâneo da capital, até chegar ao centro de toda essa
mixórdia urbanística, onde encontrou Lucio Costa em pessoa.
Das mãos dele, a jovem recebeu de presente um
exemplar do famoso Relatório do Plano Piloto e aprendeu duas formas diferentes
de usá-lo: esfregando suas páginas, Thalija poderia invocar a presença de Costa
a qualquer momento, para sanar todas as suas dúvidas a respeito de Brasília. E,
ao enrolá-lo como uma zarabatana, ela ganhava o poder de estourar as bolhas
imobiliárias que tentam gentrificar ainda mais a capital do país.
As aventuras da garota não fazem parte da rotina
comum aos estudantes de Ensino Médio que farão o Exame Nacional do Ensino Médio
(Enem). Isso porque ela é a personagem principal da HQ Thalija: Aventuras
brasilienses em busca da cidade oculta, escrita e desenhada à mão pelo
professor de arquitetura da Universidade de Brasília (UnB) Frederico Flósculo.
“Sou um desenhador. Minha escolha de vida envolveu essa habilidade natural.
Comecei a desenhar uma série de quadros sobre as manifestações de 2013. Foi daí
que surgiu a ideia.”
Flósculo juntou as questões urbanas e os problemas
típicos de Brasília em meio a um universo fantástico que foi além das linhas
arquitetônicas tão comentadas na capital. Assim, Thalija cruza com criaturas
mitológicas, como o Tatu, o Metrossauro e o Minhocão, e participa de protestos
políticos na Esplanada dos Ministérios.
“Acabei fazendo uma história que explora a cidade
de uma maneira mágica, matemática, urbanística e política. É uma interpretação
alucinada acerca dela”, explica. Para Flósculo, a HQ ajuda a trazer novas
percepções a respeito do que forma, de fato, a arquitetura e o urbanismo, em
suas dimensões mais humanas.
“Existem interpretações de Brasília que são
canônicas, mas estão tão batidas que não conseguem mais suscitar nas pessoas
aquele encantamento original, como acontecia em décadas passadas. Era realmente
necessário redescobrir a história mais cotidiana daqui”, afirma. Uma das
grandes inspirações para a obra foi o clássico Alice no País das Maravilhas, de
Lewis Carroll.“A grande ficção de Alice envolve uma adolescente inteligente e
curiosa com vários portais de contato. A mesma coisa acontece aqui: portais
para os mundos da cidade parque e da cidade tradicional, das escalas magníficas
de Brasília.”
O autor garante que a história foi pensada para
agradar a leitores de todas as idades, já que intercala momentos de inocência e
discussão. “Há coisas muito puras, como o momento em que Thajila encontra Lucio
Costa e o abraça como uma neta ao avô. Há também a geometria das crônicas, das
parábolas e das hipérboles explicadas, para entendermos Oscar Niemeyer.”
Castigos e martírios
A experiência não rendeu apenas uma HQ. Flósculo
conta que, à medida que apresentava as páginas aos seus alunos da UnB, a
empolgação deles demonstrava que a mídia poderia ser explorada em sala de aula.
“Achei aquela energia dos alunos tão forte que, no fim das contas, resolvi
criar uma disciplina que se chamará Ateliê de histórias em quadrinhos em
arquitetura e urbanismo e será oferecia em 2016.”
O arquiteto diz que não imaginava o poder da nona
arte em se tornar um ponto de apoio para o seu trabalho. “Todos nós estávamos
muito carentes por esse canal para expressão da nossa criatividade. Tenho 24
anos de ensino de arquitetura e me sinto como um professor novato.” A
empolgação é tanta que ele já está trabalhando em uma segunda HQ. Nessa nova
empreitada, vai focar em um universo mais adulto, tendo como inspiração outra
obra clássica, A Divina Comédia, de Dante Alighieri.
“Ela vai se chamar O último astronauta brasiliense.
Nela, boto o Arruda no inferno, Rollemberg é um pobre-diabo e Roriz, um diabão.
O leitor vai conhecer os sete círculos do inferno brasiliense e os políticos
estarão lá, em seus castigos e martírios”, explica.
Mudança de perfil imobiliário
Gentrificação (do inglês gentrification) significa
processo de mudança imobiliária, nos perfis residenciais e padrões culturais,
de um bairro, região ou cidade. Esse mudança envolve a troca de um grupo por
outro com maior poder aquisitivo em um determinado espaço, que passa a mais
valorizado. O termo é derivado de um neologismo criado pela socióloga britânica
Ruth Glass em 1963, em artigo sobre as mudanças urbanas em Londres. Ela se
referia ao “aburguesamento” do centro da cidade, usando o termo irônico gentry
(bem-nascidos) como consequência da ocupação de bairros operários pelas classes
média e alta londrina.
Thalija: Aventuras brasilienses em
busca da cidade oculta
» Editora Kiron
» 60 páginas
» R$ 40
» À venda na Livraria Cultura e Dom Quixote Livros
Fonte:
Rafael Campos – Fotos: Gabriela Studart/UNB-Agência – Correio Braziliense