A população carcerária da capital
dobrou desde 2009 e, atualmente, concentra a terceira maior taxa de
aprisionamento do País, com 496,8 encarcerados para cada dez mil habitantes, e
o maior coeficiente de entrada e saída
O Distrito Federal não pode ser considerado a terra da impunidade. Na verdade, o relatório da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e
Cidadania (Sejus) sobre o sistema penitenciário de Brasília revela o contrário.
A população carcerária da capital dobrou desde 2009 e, atualmente, concentra
a terceira maior taxa de aprisionamento do País, com 496,8 encarcerados
para cada dez mil habitantes, e o maior coeficiente de entrada e saída. A cada
dez pessoas liberadas, outras 26 são incluídas no sistema.
Essa realidade é acompanhada do quinto maior percentual de superlotação
do Brasil e, segundo autoridades e especialistas, é aí que mora o problema.
Atualmente, a população carcerária do DF é de 14.351 internos para 7.411
vagas disponíveis, segundo a Sejus, e essa diferença aumenta constantemente. A
estimativa da pasta é de que, a cada ano, haja um acréscimo de mil pessoas ao
total de presos. A expectativa, no entanto, é de mais 6,5 mil vagas
serem criadas nos próximos seis anos, número insuficiente para sequer
cobrir o déficit atual.
Somado a isso, existe a carência de agentes penitenciários para
zelar por esse sistema. Conforme a Sejus, existem 1,3 mil servidores, sem
previsão de aumento do contigente, pois, desde 2013, os concursos não
resultaram em novos efetivados. Ou seja, em tese, cada agente seria responsável
por vigiar pelo menos 11 presos.
O secretário-geral do Sindicato dos Agentes de Atividades Penitenciárias
(Sindpen-DF), Wesley Bastos, é incisivo: a superlotação, combinada à falta de
efetivo, explica a fuga de cinco detentos há duas semanas – todos já foram
recapturados. “Quando você tem muitas pessoas dentro da cela, há mais gente
para fazer o trabalho de uma fuga, como cortar grade, se esconder de
segurança”, justifica.
Pense nisso
As condições atuais pouco favorecem a ressocialização e podem ajudar a
explicar o alto índice de reincidência dos confinados no Complexo da Papuda.
Conforme relatório, a estimativa é que 70% dos presos já tenham passagens pela
polícia anteriormente. A cada volta ao sistema prisional, as perspectivas de
recuperação são reduzidas, e a periculosidade dos detentos cresce.
Agentes insuficientes
O secretário-geral do Sindicato dos Agentes de Atividades Penitenciárias
do DF (Sindpen- DF), Wesley Bastos, afirma que seriam necessárias mais mil
contratações e denuncia que o contingente de agentes de 2009 até este ano caiu
pela metade, enquanto a quantidade de detentos mais que dobrou. “Quando eu
entrei, em 2009, eram mais ou menos 7 mil presos para 2,6 mil agentes. Agora,
são praticamente 15 mil para menos de 1,5 mil agentes”, indigna-se.
A grande preocupação de Bastos é quanto à realização de atividades
rotineiras no complexo. Segundo ele, com menor efetivo, qualquer tarefa
torna-se de risco. “Para verificar estrutura, revistar celas, liberar
banho de sol e alimentação, é preciso que o agente acesse alas onde estão os
presos e existe risco de um agente virar refém, porque não vai ter ninguém para
dar cobertura”, alerta.
Prova viva
O ex-detento e hoje presidente da cooperativa Sonhos de Liberdade, Fernando
Figueiredo, de 43 anos, atesta esse clima de insegurança. Após passar seis anos
enclausurado, ele foi indultado em 2012 e lamenta que a situação prejudique
tanto presos quanto profissionais. “O sistema atual não permite a quase
ninguém trabalhar. O agente não vai ficar abrindo cela, sob o risco de ser
feito refém, para preso sair toda hora”, critica.
Sobre as condições que encarou, Fernando não é brando. “Eu morava em uma
cela que cabia no máximo umas duas pessoas, mas havia sete”, relembra-se. O gosto
amargo da superlotação, que à sua época não atingira o nível atual, ainda lhe
traz más recordações. “Você vai vivendo um clima tenso lá dentro, e cada
quadradinho de espaço vira motivo de briga. Fica um monte de leão selvagem
dentro da cela, se estranhando”, relata.
“Tem que trabalhar”
Para ele, “a Justiça não tem noção da gravidade da situação lá dentro”,
muito menos a Sejus, órgão responsável pela gestão do complexo da Papuda.
“Tanto eles quanto a população acham que é só enclausurar o camarada na cela e
largar ele lá. Eles se esquecem que um dia ele vai sair. Se não tiver
oportunidade, vai ficar louco, não vai ter nada a perder”, analisa, e emenda:
“Se o cara fica confinado, a mente dele para no tempo. Essa pessoa tem que
trabalhar lá dentro, pagar pela própria comida, e não o contribuinte bancar
tudo por ele.”
Cooperativa ajuda ex-detentos e presos
Fernando Figueiredo abriu a cooperativa Sonhos de Liberdade para
dar oportunidades a ex-detentos como ele e presos do regime semiaberto. Sediado
em um galpão na Cidade Estrutural, seu projeto, que recicla madeira e materiais
de construção, além de produzir artefatos como bolas de futebol, ajuda a
reinserir na sociedade pessoas como Luiz Antônio Jesus Carneiro, de 48 anos.
Ao deixar a prisão, em 2012, ele pediu uma ficha telefônica para ligar,
de um orelhão, para a sua família, tamanha a defasagem temporal que enfrentava.
Ele ficou quase 20 anos enclausurado na Papuda, lugar que, enquanto foi seu
lar, sofreu várias mudanças ao longo do tempo.
“No começo, tinha árvore nos pátios, a família podia circular por lá.
Depois de um tempo, era tudo muito rígido. Cada cela tinha 20 pessoas, quando
cabiam umas oito, e a maioria dormia no chão”, revela Luiz Antônio.
Ele admite ter vivido uma infância “só para fazer coisa errada”, o que o
levou a reincidir em crimes e acumular 68 anos de prisão após praticar furtos,
roubos a residência e assaltos no início da década de 1990. Ele recebeu o
perdão de pena por bom comportamento e por ter se mantido ocupado durante o
cárcere, mas sua fisionomia murchou, cabelos caíram e sua noção da realidade,
segundo o próprio, ficou prejudicada.
Ressocialização
Para o titular da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania,
João Carlos Souto, o caminho para reduzir o déficit é justamente aumentar o
número de presos ressocializados, a exemplo de Fernando e Luiz Antônio,
envolvendo-os em mais atividades dentro e fora do Complexo da Papuda.
“Se de dez presos você ressocializa oito, são oito pessoas que não vão
tirar a vida de outras pessoas ou atentar contra o patrimônio quando deixarem o
sistema”, afirma o secretário.
Souto lembra que o problema é mais antigo do que sua gestão, mas admite
preocupação com a situação atual. “Não é saudável em nenhum aspecto. A solução
é termos mais recursos, mas sabemos do momento de restrição orçamentária”, diz.
Ele exalta, porém, os progressos já conquistados, que humanizaram as visitas de
familiares e informatizaram alguns processos.
Saiba mais
Atualmente, a Papuda enfrenta um surto de caxumba, que levou a diretoria
a fechar duas alas do complexo para evitar a proliferação do vírus, transmitido
pela saliva. Parentes e advogados foram impedidos de visitar seus entes
queridos e clientes, respectivamente, após 73 internos e uma servidora terem
sido diagnosticados com a doença.
Após a constatação da enfermidade, cerca de 1,6 mil pessoas, entre
detentos, agentes penitenciários e funcionários de manutenção, foram vacinadas
contra doença, que costuma provocar febres, calafrios e dificuldade de engolir.
Em casos graves, a pessoa infectada com caxumba pode ficar surda e, em
situações mais raras, morrer.
O ex-diretor de marketing do Banco do Brasil, Henrique Pizzolato,
condenado no processo do Mensalão em 2013, está preso em um dos blocos afetados
pelo vírus, mas não teria contraído a doença. Além dele, o ex-deputado federal
de Rondônia, Natan Donadon, preso por formação de quadrilha e peculato há dois
anos, também está no bloco e, assim como o “colega”, não teria apresentado
sintomas.
Fonte: Eric
Zambon - Jornal de Brasília – Foto: Wilson Dias-ABr