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Utopia, FHC e Miriam Dutra

A Utopia de Thomas More está comemorando 500 anos. Foi obra seminal para impulsionar as utopias sociais do século 18 na Europa e, também, a atmosfera de esperança dos sonhos socialistas no século 20. Mais do que superar o sistema capitalista, a Utopia de More, com a proposta de criar uma sociedade não egoísta, era mudar o homem. A julgar pelo interesse que tem despertado o affaire Fernando Henrique Cardoso com a jornalista Miriam Dutra, o homem brasileiro mudou pouco e os caminhos para a mudança serão longos e tortuosos.

O caso, a rigor, não tem interesse algum, salvo destruir a reputação de FHC e, também, a da jornalista. A pergunta natural que tem sido recorrente na mídia é: por que só agora, passadas três décadas, os labirintos do affaire vêm à luz? Curiosamente, o drama do casal — que, enquanto não envolver dinheiro nem a máquina pública, é questão meramente pessoal — chega à mídia num momento em que o país vive autêntico caos. De um lado, o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, a avalanche de denúncias sobre o tríplex e o sítio da família do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, prisões relativas à corrupção na Petrobras, leia-se Lava-Jato  — e, da mesma forma, o rumoroso caso do presidente da Câmara dos Deputados, que pode vir a perder o mandato.

De outro lado, afloram as denúncias de corrupção contra o governo paulista — metrô, já antiga, e a merenda escolar, recentemente — e aquilo que poderíamos chamar de nova versão das pragas bíblicas do antigo Egito, só que ambientadas ao Brasil: zika vírus, microcefalia, inflação ascendente, desemprego, impostos que desafiam a gravidade e fechamento de fábricas, graves problemas ecológicos, profusão de processos judiciais por parte da população contra empresas privadas e o Estado, queda dos índices de confiança no país, governo que não governa, escalada da violência, e, assim, sucessivamente. A utopia semeada por Tomas More, deste lado do Equador, nunca pareceu tão distante.

Se olharmos para trás, vamos nos deparar com as grandes mobilizações de junho de 2013. Naquele momento, o Brasil parecia estar em sintonia com a história e o cidadão saiu às ruas com cartazes reivindicando reformas. O Congresso principalmente se manifestou contra as mudanças. Foi aí que o governo saiu com uma solução aparentemente genial. Jogou no meio da salada geral o Programa Mais Médicos. As atenções se voltaram para o novo tema e as reformas saíram de pauta.

Não seria esse o objetivo do caso FHC-Miriam Dutra? Desviar as atenções, mais uma vez? Não seria o caso de a sociedade questionar a quem interessa, neste exato momento, a crise em que mergulha a imagem, que já não é das melhores, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso? Ou, de se perguntar ainda, por que o tema das reformas saiu subitamente da pauta dos poderes públicos e nunca mais voltou?

Talvez seja essa a varinha mágica escondida no caso FHC-Miriam Dutra. Levar o brasileiro a refletir sobre a própria utopia, se é que ela um dia existiu. Em que momento se perdeu na ênfase de questões periféricas e, muitas vezes, individuais, em detrimento das mudanças de estrutura? O que há em comum entre todos esses episódios — o adiamento das reformas, em especial — é que a comunicação com a sociedade vem sendo manipulada. E o país precisa despertar e sonhar acordado. Por que permanece adormecido?

O caso FHC-Miriam Dutra é de escasso interesse se visto pelo ângulo puramente do drama pessoal, diferentemente de questões essenciais como o sítio e o tríplex de Atibaia e os casos de corrupção no governo paulista. O país precisa ser passado a limpo, tanto no âmbito da esquerda quanto dos conservadores. Não pode ficar refém de agenda pequena, mesquinha mesmo, geradora de grande distopia que vai terminar por devorar os políticos e partidos. É o momento ideal para o país se repensar, propondo, inclusive, a renovação da representação política e das organizações políticas. Não se trata do impeachment da presidente da República, mas de aposentar toda uma cultura de tirar vantagem que atravessou o tempo da ditadura e se instalou no ambiente da democracia. Mudar na prática é a utopia possível. Para isso, é importante estabelecer ilhas de sonhos, como advogava a Utopia de More. E romper com as sombras de uma época que já não existe mais.


Por:Francisco Viana - Doutor em filosofia política (PUC-SP) e consultor de comunicação – Fonte: Correio Braziliense – Foto/Ilustração: Blog - Google

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