Para especialistas, a ocupação urbana desenfreada é
um dos grandes fatores para a grave falta de água por que passa a capital.
Várias nascentes foram aterradas e o solo, impermeabilizado, impedindo a
alimentação dos lençóis freáticos
A chuva cai no asfalto e deixa à mostra uma espuma
branca, que exige atenção dos carros. Muitos deles passam errantes e patinam
pela via, formando poças d’água e lidando com a enxurrada repentina que molha o
Distrito Federal e anuncia uma trégua da seca. No canteiro central, a cena é
diferente. O líquido é sugado rapidamente, a grama perde seus tons avermelhados
e o cheiro de terra molhada cria um ar poético. Porém, muito mais que poesia,
este momento do ciclo torrencial é indispensável para a garantia do
abastecimento no DF. “Em média, 90% das águas dos nossos rios vêm daquelas que
se infiltram no solo, alimentando os lençóis freáticos”, explica o pesquisador
da Embrapa Cerrados Jorge Werneck.
Para ele,
diante da maior crise hídrica da história, é imprescindível olhar o solo para
além do deficit habitacional, focando na importância dele para o abastecimento
de toda a população. “A palavra de ordem é adaptação. Gerir com água em excesso
é fácil. Quando a oferta reduz dessa forma, temos que lembrar que somos quase 3
milhões de habitantes. E que, em algumas regiões, a capacidade de suporte
aquífero já foi superada”, alerta.
Muito
mais que as localidades atingidas atualmente pelos cortes feitos pela Companhia
de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb), o especialista garante que
30% da área reservada para a agricultura, atualmente, não tem como ser
irrigada. E, com o regime de chuvas totalmente inesperado de 2016, a exigência
de uma nova postura em relação ao solo ficou ainda mais evidente. “Este ano,
tivemos pontos em que a quantidade de chuva foi menor ao que estávamos medindo
na nossa série histórica desde a década de 1970. Há locais, como a região do
Pad-DF, nos quais choveu 600mm. Isso é muito pouco diante da média dos últimos
20 anos, de 1.300mm. Ninguém imaginaria que poderia chover essa quantidade em
qualquer lugar daqui”, assegura. Como a garantia meteorológica não existe mais,
o verdadeiro preço das invasões começa a ser cobrado.
De acordo
com Sérgio Kóide, chefe do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental (ENC)
da Universidade de Brasília (UnB), a população do DF se tornou muito maior do
que sua área suporta. Dessa forma, a disponibilidade hídrica, antes mesmo de a
crise se mostrar de forma tão visível, já era considerada crítica. “Aqui, temos
nascentes de três grandes bacias, não passa nenhum rio grande e temos um
consumo intenso. De um lado do DF, uma grande população. Do outro, forte
produção agrícola”, explica.
Cobrando a conta
A promotora de Justiça de Defesa do Meio Ambiente Marta Eliana de
Oliveira afirma que a população está pagando uma conta que vem crescendo desde
a década de 1990, em decorrência da especulação imobiliária, que não compreende
a necessidade de preservação ambiental. “Alguns governos foram extremamente
coniventes, incentivavam a ocupação irregular, a grilagem de terra. Nascentes
foram aterradas; poços, perfurados sem autorização. A captação em Corumbá está
atrasada e deve atrasar mais.”
Para
Sérgio Kóide, a ocupação urbana desenfreada é o mais grave problema a ser
enfrentado diante de toda a crise hídrica que marca 2016. “Começa pela
impermeabilização do solo, com asfalto, residências. Isso faz cair
drasticamente as áreas de infiltração e também a recarga dos lençóis freáticos.
O segundo problema são as ocupações. Há muitas chácaras com diversos poços
abertos, que tiram água subterrânea. Só na Bacia do Descoberto, até 2014, havia
400 delas. Essa é a mesma água que vai para os rios”, denuncia. A Agência Reguladora
de Águas, Energia e Saneamento do DF (Adasa) é responsável por supervisionar os
poços artesianos. Questionada sobre o controle, a assessoria de imprensa
relatou as formas como ocorre — ações de fiscalização programadas e não
programadas —, sem especificar de que forma isso afeta a inspeção dos poços.
Em
relação às ações que visam diminuir o impacto do racionamento, a agência frisou
que, entre outras atividades, está coordenando atos que visam a alocação de
água nas bacias, reduzindo o volume de captações, alternando os horários de
captação e aumentando a disponibilidade hídrica para o uso prioritário
(abastecimento humano).
Urbanização impacta aquíferos
Ocupação urbana às margens do Descoberto:
loteamento irresponsável
Situações sociais diversas convivem no acirrado
mercado ilegal de terras do Distrito Federal. Grilagem, falta de planejamento e
descontrole na ocupação são problemas antigos e, entre as consequências
diretas, trazem a diminuição da captação aquífera do solo, já que permitem o
surgimento de edificações onde deveria haver terra limpa. “Estão mais do que
claras as consequências da ocupação irregular. Ela traz não só o problema em
relação à água, mas à falta de planejamento. O parcelamento irregular gera mais
lixo, mais contaminação e tudo vai para a água”, afirma Ana Cláudia Fiche
Ungarelli Borges, superintendente de operações da Agência de Fiscalização do
Distrito Federal (Agefis). Dessa forma, seja no Sol Nascente, seja no Lago Sul,
toda a população é prejudicada quando as torneiras secam.
Jorge Werneck, da Embrapa, explica que, se a terra é ocupada de forma ilegítima, não há como ser feito nenhum planejamento para evitar a impermeabilização do solo. “Isso faz com que a recarga dos aquíferos, que vão reabastecer nossos rios, seja reduzida. Há mais escoamento superficial, já que a água não se infiltra e não vai abastecer nosso maior reservatório, que é o solo.”
Cláudia Fiche afirma que uma das modalidades que mais exigem esforços da Agefis são chácaras parceladas, principalmente em áreas próximas ao Rio Descoberto (veja quadro). “Imagine uma área de três hectares, que pode ter até três edificações, dividida em quatro condomínios, com 20 edificações, cada, usando água de forma irregular? Isso tem ocorrido cada vez mais.”
Um dos exemplos envolve o Condomínio Estância Quintas da Alvorada, no Altiplano Leste — erguido na Área de Proteção Ambiental da Bacia do Rio São Bartolomeu. O Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios (TJDFT) havia determinado que as construções erguidas no local, no início da década de 1990, fossem demolidas. A decisão se baseou no Plano Diretor de Ordenamento Territorial (Pdot), que não inclui a região situada entre o Lago Sul e o Paranoá. Em agosto, a Justiça determinou a suspensão das derrubadas, com base na decisão do desembargador Flávio Rostirola, da 3ª Turma Cível do TJDFT, que atendeu a um pedido dos moradores do local.
Enquanto a discussão segue, a expectativa de ordenamento urbano cresce. Um dos pontos que podem ajudar a criar uma configuração mais precisa no que toca os cuidados com a terra em áreas regulares é a Lei de Uso e Ocupação do Solo (LUOS), debatida desde 2013 e que complementa o Plano Diretor de Ordenamento Territorial (Pdot), trazendo regras para construções em áreas residenciais. Luiz Otávio Alves Rodrigues, secretário adjunto da Secretaria de Gestão do Território e Habitação (Segeth), afirma que a lei tratará da adequação do uso e da ocupação do solo. “Ela vai permitir analisar melhor o impacto da descarga de aquíferos e as taxas de impermeabilidade do solo nas áreas residenciais. E vai compatibilizar seus parâmetros de recarga aquífera com o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) para garantir maior índice de permeabilidade.”
Marcus Vinícius Batista de Souza, coordenador da Comissão de Meio Ambiente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do DF (Crea-DF), lembra que, além de todos os esforços, não pode ser deixada de lado a intensificação das campanhas para conscientizar a população. “Vejo quase uma ausência desse tipo de mensagem, que precisa chegar até as pessoas. Elas não podem ser aleatórias, mas intensas e focadas nos grandes consumidores, bem como na reutilização da água. Precisamos começar a estimular mais práticas sustentáveis.”
Sustentabilidade
O Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) é um instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente regulamentado pelo Decreto Federal nº 4.297/2002. Pretende viabilizar o desenvolvimento sustentável de determinada região a partir da compatibilização de suas características ambientais e socioeconômicas. Para alcançar esse objetivo, leva como base diversos diagnósticos e análises técnicas, que visam à proposição de diretrizes gerais e específicas para unidades territoriais homogêneas.
Jorge Werneck, da Embrapa, explica que, se a terra é ocupada de forma ilegítima, não há como ser feito nenhum planejamento para evitar a impermeabilização do solo. “Isso faz com que a recarga dos aquíferos, que vão reabastecer nossos rios, seja reduzida. Há mais escoamento superficial, já que a água não se infiltra e não vai abastecer nosso maior reservatório, que é o solo.”
Cláudia Fiche afirma que uma das modalidades que mais exigem esforços da Agefis são chácaras parceladas, principalmente em áreas próximas ao Rio Descoberto (veja quadro). “Imagine uma área de três hectares, que pode ter até três edificações, dividida em quatro condomínios, com 20 edificações, cada, usando água de forma irregular? Isso tem ocorrido cada vez mais.”
Um dos exemplos envolve o Condomínio Estância Quintas da Alvorada, no Altiplano Leste — erguido na Área de Proteção Ambiental da Bacia do Rio São Bartolomeu. O Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios (TJDFT) havia determinado que as construções erguidas no local, no início da década de 1990, fossem demolidas. A decisão se baseou no Plano Diretor de Ordenamento Territorial (Pdot), que não inclui a região situada entre o Lago Sul e o Paranoá. Em agosto, a Justiça determinou a suspensão das derrubadas, com base na decisão do desembargador Flávio Rostirola, da 3ª Turma Cível do TJDFT, que atendeu a um pedido dos moradores do local.
Enquanto a discussão segue, a expectativa de ordenamento urbano cresce. Um dos pontos que podem ajudar a criar uma configuração mais precisa no que toca os cuidados com a terra em áreas regulares é a Lei de Uso e Ocupação do Solo (LUOS), debatida desde 2013 e que complementa o Plano Diretor de Ordenamento Territorial (Pdot), trazendo regras para construções em áreas residenciais. Luiz Otávio Alves Rodrigues, secretário adjunto da Secretaria de Gestão do Território e Habitação (Segeth), afirma que a lei tratará da adequação do uso e da ocupação do solo. “Ela vai permitir analisar melhor o impacto da descarga de aquíferos e as taxas de impermeabilidade do solo nas áreas residenciais. E vai compatibilizar seus parâmetros de recarga aquífera com o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) para garantir maior índice de permeabilidade.”
Marcus Vinícius Batista de Souza, coordenador da Comissão de Meio Ambiente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do DF (Crea-DF), lembra que, além de todos os esforços, não pode ser deixada de lado a intensificação das campanhas para conscientizar a população. “Vejo quase uma ausência desse tipo de mensagem, que precisa chegar até as pessoas. Elas não podem ser aleatórias, mas intensas e focadas nos grandes consumidores, bem como na reutilização da água. Precisamos começar a estimular mais práticas sustentáveis.”
Sustentabilidade
O Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) é um instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente regulamentado pelo Decreto Federal nº 4.297/2002. Pretende viabilizar o desenvolvimento sustentável de determinada região a partir da compatibilização de suas características ambientais e socioeconômicas. Para alcançar esse objetivo, leva como base diversos diagnósticos e análises técnicas, que visam à proposição de diretrizes gerais e específicas para unidades territoriais homogêneas.
Fonte: Rafael Campos – Foto: Bruno
Peres/CB/D.A.Press – Google – Correio Braziliense