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Conheça os bastidores escandalosos do mundo da moda em Brasília

Revelamos o que você não vê nas passarelas. Humilhação, distúrbios alimentares e depressão permeiam as histórias de quem trabalha nesse meio no DF

Da sala de desfile para dentro, pés de manicure fresca exibem sapatos que custam o equivalente a um salário mínimo — ou ele multiplicado algumas vezes —, alfaiatarias extravagantes, maquiagens lançadas há pouco. As pessoas se cumprimentam com beijinhos de bochecha. Todos se acomodam na primeira fila. O show vai começar. 
"Nos bastidores, no entanto, modelos de bobes nos cabelos, estilistas, produtores atarefados e maquiadores vivem o lado feio dessa indústria. Histórias de humilhação, salários mal pagos — ou nem sequer pagos — distúrbios alimentares, depressão e uma competitividade que puxa tapetes na mesma velocidade com que mudam as tendências a cada estação. O mundo da moda é muito bonito para quem vê de fora. Mas o verniz acaba por aí."
Há algumas semanas, o relato de uma ex-modelo brasileira desligada da sua agência por estar “gorda” com 50kg e mais de 1,70m de altura chamou a atenção para os absurdos do mercado. Délleny Mourão desfilou nas passarelas do São Paulo Fashion Week e chegou a ficar anêmica para tentar entrar no padrão das modelos de passarela.
                                       Délleny Mourão: “gorda” demais para a passarela
Brasília não é nenhuma São Paulo. Não é referência de moda nacional nem exporta tendências com a mesma desenvoltura da capital paulista. O mercado aqui se movimenta às custas de poucas grifes locais, que contratam serviços de produção, fotografia e modelagem para catálogos e campanhas de redes sociais. Mas também não está avesso aos perrengues da indústria. 

Tapetes são puxados. Cachês passam batido por clientes ou pelas agências, que “esquecem” de repassar às meninas. Elas, por sua vez, equilibram a “vida normal” com a carreira, que na maioria dos casos é mais passatempo do que profissão. Histórias como essas foram contadas ao Metrópoles por profissionais de todos os setores da indústria, do booker da agência — aquele que faz a mediação entre marca e modelo — ao maquiador. O mundo da moda é mesmo muito diferente no Instagram.
Acabou?
Há duas vertentes de profissionais da moda por aqui. Os desiludidos, que trocaram os holofotes pelos escritórios caretas e afirmam que o mercado de moda da capital “acabou”, e os resignados, que veem aqui um mercado minimamente sustentável, que se mantém como pode. 

Alle Albuquerque faz parte do primeiro time. Começou a trabalhar com moda aos 17 anos, numa antiga agência de Brasília, chamada Look. Anos depois, abriu seu próprio negócio, a Win Model, que tinha sede na 112 Norte, num prédio cercado de estúdios, agência de publicidade e empresas de comunicação. Chegou a ser uma das principais agências de Brasília. Cinco anos depois de fechar as portas da Win, Alle fala de trás de uma mesa de uma loja de iluminação no Sudoeste. Diz que está tentando se reencontrar.
“O que acontece é que as agências antigamente viviam de trabalho, não de vender book. Tem agência hoje que tem um departamento de telemarketing só pra vender as fotos. Liga para a menina e diz: ‘Oi, você esteve aqui aquele dia, você tem o perfil, vamos fechar esse book’”, conta. “Por isso fechei minha agência. Não queria viver de book.”
Os tais trabalhos acabaram, segundo argumenta Alle e outros profissionais, quando os eventos de moda da capital começaram a minguar. O Brasília Fashion Festival durou só três edições. O Capital Fashion Week, mais tradicional da cidade, anda cada vez menor em participações — o que se diz é que os estilistas não têm achado vantagem nenhuma em desembolsar R$ 30 mil para participar do evento. Sem as passarelas e sem as campanhas publicitárias do governo por conta da crise, a coisa ficou rala de vez.
Os melhores desfiles aqui pagavam algo entre R$ 300 e R$ 400 para cada menina por dia de trabalho. Isso quando pagavam bem. Uma modelo tipo “C” — a menos experiente no time de contratadas, as chamadas “new faces” — no SPFW recebe o equivalente por cada vez que pisa na passarela.
Sem os desfiles, hoje o que mantém as contas bancárias (mais ou menos) cheias dos profissionais locais são catálogos de troca de coleções de marcas da cidade, como Ortiga e Avanzzo. As modelos viram-se como podem para ser lembradas.
Fazem de prova de roupa de vestido de noiva a “free lancer” de blogueira de moda moderninha no Instagram. A maioria dos editoriais de moda sequer pagam as meninas. Usam o argumento da “divulgação da imagem” — que pode ser bom para quem sonha alto, mas não coloca nenhum saco de arroz na dispensa.
Há outra coisa peculiar ao mercado de moda de uma capital “pequena”, como Brasília. “Aqui parece que todo mundo é dono de alguma coisa”, brinca André Gagliardo, que saiu da capital para fazer carreira como maquiador especializado em moda em São Paulo, mas ainda não se recolocou no mercado desde que decidiu voltar a Brasília, há dois anos. 
“Peguei uma revista para produzir e é uma luta. Você não consegue roupa emprestada, aí a modelo não é modelo, é filha da dona de algum lugar, a locação é a casa de alguém porque o arquiteto é o fulano de tal. Pode ser um pouco de recalque porque não consegui me recolocar aqui, mas todo trabalho que eu peguei aqui tinha ‘treta’”, diz.
"Aqui parece que todo mundo é dono de alguma coisa." - (André Gagliardo, maquiador)

“Treta” também é uma palavra que marca a relação entre agências e modelos. Não é difícil encontrar processos nos tribunais com cobrança de cachê e uso indevido de imagem. Já houve casos em que, diante de um juiz num processo de cobrança de cachês “surrupiados”, o dono da agência chegou a dizer que “nunca tinha visto” a modelo diante dele. A menina nunca viu o dinheiro. A quantia girava em torno de R$ 2 mil. Ficou por isso mesmo.
A própria Win, de Alle, chegou a ser condenada pelo TJDFT a pagar uma indenização de R$ 5,5 mil a uma modelo por pagamento de cachê em atraso e uso indevido de imagem. A menina havia sido contratada para o catálogo da loja, não recebeu, e ainda teve as imagens divulgadas na internet e em banners de um evento fitness da cidade. A confecção também teve que pagar R$ 3,9 mil à moça. A decisão foi unânime.

“Salsichas não serão filé mignon”
Para o produtor de moda Marcus Barozzi, um dos mais ativos da capital, com trabalhos inclusive fora daqui, há um certo “ressentimento” nessa acusação de que o mercado brasiliense está morto e enterrado. “Brasília é um celeiro de bons e poucos nomes. Nós não somos criadores. Somos consumidores”, resume. “Mas não acho isso um defeito, não. Há 100 anos, São Paulo também não era um grande polo de moda. Existe uma certa amargura com relação a isso, acho.”
O que Barozzi diz, no entanto, é que existem aqui “grupinhos” que não permitem que o mercado se expanda. “Panelinha é uma coisa suave. Eu chamo de cartel mesmo. Se você quer fechar com um fotógrafo, ele só trabalha com o maquiador tal. Ou então o produtor só trabalha com a modelo tal. As pessoas se fecham num círculo mesmo. Isso é muito grave”.

Ele mesmo, no entanto, tem seus preferidos. “Hoje tenho em torno de dez modelos com quem trabalho e escolho de acordo com o perfil da marca. A cliente de uma loja não é a mesma de outra. Para uma marca que visa uma mulher mais ‘real’, por exemplo, não precisa ser uma modelo magérrima.”


Barozzi é conhecido pelos resultados impecáveis, mas também por alguns desentendimentos com modelos nos bastidores. Um deles, com uma menina que tentou a sorte num casting — o teste de escolha das modelos – para um desfile de uma marca de moda praia da cidade. Ele teria dito a ela que ela estava fora da lista porque não tinha “medidas” adequadas. Ela revoltou-se com o comentários. Os dois brigaram. Ele prometeu nunca mais considerá-la para nenhum outro trabalho que assinasse na cidade.
“A coisa das medidas existe para modelo fashion. Mas a maioria delas nasceu assim. Vou ser polêmico, mas essa coisa do ‘padrão’ quem cria são as mulheres. As pessoas se influenciam por esse tipo de coisa, mas você não pode fugir do que você é. Se você é loira, por exemplo, não dá para querer ser a Kim Kardashian”, compara Barozzi.
"Se você é salsicha, fica até meio ridículo se vender como filé mignon. Vá ser o melhor cachorro quente que existe, mas não seja filé mignon." - (Marcus Barozzi, produtor de moda)
Querer ser “filé mignon”, no entanto, é o que acaba fazendo vítimas de anorexia e distúrbios alimentares pelas agências modelo. O discurso de que “a culpa é da modelo”, que quer entrar nas medidas de qualquer forma, é bem comum. Alle conta, por exemplo, que na sua época de agência, muitas faziam o casting “tampando o bumbum” e “imploravam” para entrar na seleção prometendo que estariam mais esguias até o dia do desfile ou das fotos. Depois, passavam os dias à base de gelo.

Roberta Serednicki é um dos nomes mais lembrados dos tempo “de ouro” dos eventos de moda da capital pelos profissionais. Trabalhou até o início dos anos 2000 e chegou a ser finalista do concurso de modelos da Ford Models, de onde saíram nomes como Isabella Fiorentino e Adriana Lima.  Ela chegou a beirar a anorexia para se encaixar nos padrões de passarela.
              Roberta em catálogo de noivas de Brasília no final dos anos 1990
“O padrão de magreza era elevado. Por mais magra que fosse, sempre me considerava ‘obesa’ ”, conta. “As pessoas comentavam que fulana não está tão magra quanto o necessário e esses valores eram partilhados no backstage dos desfiles. Modelos um pouco menos magras que eu não eram selecionadas para os trabalhos e os motivos eram certeiros. Havia uma insatisfação constante com o corpo.”
Roberta conta que, no auge da carreira, prestes a se lançar internacionalmente, conheceu o marido dela. Formou-se em direito e viajou não para desfilar, mas para fazer um mestrado. Dos tempos da moda, guardou só o que viveu de bom. “Afinal, quando a vida passa, são as boas amizades que ficam.”

FONTE: CAROLINA SAMORANO  – FOTOS: FACEBOOK - FELIPE MENEZES - KRISTIAN DOWLING/GETTY IMAGES-  METRÓPOLES

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