Por Adriana Kortland-Grandin,
Traduzir uma parte na outra parte
— que é uma questão de vida ou morte — será arte? Ferreira Gullar, que acaba de
nos deixar, emprestou-me esses versos para inspirar a reflexão sobre as partes
aparentemente insolúveis de nossa sociedade atualmente. Somos uma sociedade
dividida até a raiz. Em comum: sofrimento, ódio, e falta de tradição
democrática.
Meu consultório de psicologia lotou como nunca. Gostaria que o mundo
todo fosse um só pescoço, para decepá-lo de uma só vez, disse-me um cliente,
citando a frase atribuída a Nero, o imperador romano famoso por ter incendiado
a própria cidade. A razão da cólera? Ele explode de indignação pelo mar de lama
da corrupção que nos inundou (ou pelo menos, passou a ser conhecido), pelos
índices do sonegômetro chegando a meio trilhão de reais, pela falta de
confiança na maioria das instituições democráticas, pelos pacientes que ele não
consegue atender, pois falta quase tudo no hospital onde é médico. O que sobra
de nós nesta terra devastada? Estamos exaustos, inflexíveis e com medo,
portanto agressivos.
Meu cliente decidiu passar o Natal longe da família, porque por hora é
briga na certa. O alto grau de agressões mútuas fala mais do que o código
genético, ou uma vida em comum. “Petralhas e coxinhas não se misturam!”, disse
ele. Neste cenário polarizado onde cada um tem certeza de que o outro é seu
inferno, mas parece não se dar conta de que ele é o inferno do outro que vai
infernizá-lo de volta e assim sucessivamente, envenenamos a atmosfera na qual
respiramos, para além do que a concretude da crise já nos avassala.
Mas família é família, e cai bem um presente, nem que seja depois das
festas. Alguma sugestão?, perguntou. Várias, respondi: quietude, pausa,
repouso, e quilos de tolerância ativa. Pelo menos é este o tipo de presente que
decidi dar e pedir. Nada material, só o invisível e plural.
Tolerância ativa, o desafio democrático difícil de aprender. Não basta
eu saber que existem pessoas de opiniões políticas, religiosas, ou de
sexualidade diferente da que penso ser certa. Se logo depois acrescento ao meu
pensamento o famoso complemento desde que não chegue perto de mim, já
exterminei o outro, que nem Nero. A não aceitação das diferenças impede a vida
de acontecer. Somos quem somos, porque houve muita mistura antes. A
coexistência de diferenças — tolerância ativa — é o pilar de uma sociedade
democrática.
Meu cliente perpetua as discussões em sua mente — tipo metralhadora
giratória — e nas horas vagas se mune de argumentos para o próximo combate.
Tenho compaixão por ele. Não é pena dele. É latim. Compassio: sentir junto.
Conheço bem o que ele sente, embora esteja do outro lado, o lado que ele culpa
e gostaria de exterminar.
Não existe humanidade sem multiplicidade. O eu se constrói na mistura
permanente, para além do gosto pessoal. Acontece que não nos damos conta da
amálgama que nos compõe, por que herdamos pacotes plurais sem sabê-lo. Já foram
integrados. Exemplo oportuno: Natal. A cena construída para o dia 25 é de um
pinheiro decorado, um Papai Noel de vermelho e branco, presentes. Influências
distintas, se não opostas. A festa comemora o nascimento do deus dos cristãos,
mas a data em si é a de uma festa pagã, a árvore também, e o Papai Noel gera
contradição entre nutricionistas. Se essas influências diversas nos estivessem
alcançando agora, pela primeira vez, não imagino que seriam aceitas de imediato.
No entanto, nada disso acontece frente às alegorias natalinas. Herdamos o
pacote pronto, integrado, e ele nos é natural.
Com relação ao pacote democrático, não o herdamos pronto. Pelo
contrário. Herdamos o pacote por fazer. O pacote pluralidade é trabalho nosso.
Traduzir-se uma parte na outra parte — que é uma questão de vida ou morte —
será arte? Interpretando livremente Gullar, estamos lidando agora com vida ou
morte da democracia recém-nascida, estamos lidando com a arte da transformação
de nossa herança cultural inflexível, dividida e autoritária, produto de cinco
séculos de imposições diversas, você sabe com quem está falando?Eu prendo, bato
e arrebento! Vou acabar com a tua raça!
A arte seria conseguir a coexistência entre partes (que não se gostam, e
nem precisa), mas concordam em dividir o espaço comum da democracia, a qual,
segundo Churchill, é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as
outras que foram experimentadas.
"Que venha o Natal e que nossas ações possam
ser, na medida do possível, plurais e sensíveis."
(*) Adriana Kortland-Grandin
- Psicóloga clínica e escritora – Correio Braziliense –
Foto/Ilustração: Blog - Google