À noite, os integrantes da equipe de Lucio Costa, com equipamentos
astronômicos, conferiam, pelo céu, os cálculos de cada ponto marcado no solo
Com base na Via Láctea, os engenheiros demarcaram os pontos que
orientaram as edificações que deram singularidade à capital da República.
Documentos mostram como o plano urbanístico de Lucio Costa saiu do papel sob
orientação dos astros
*Por Luiz Calcagno
Engenheiros tiveram de olhar para o céu para fazer Brasília crescer no
chão do planalto central. As constelações da nata de estrelas que formam a Via
Láctea foram fundamentais para que os trabalhadores tivessem certeza da
marcação das coordenadas geográficas. Marcas que garantiriam que o Plano Piloto
ficaria no lugar certo. Um pequeno deslize e, talvez, os eixos não se
encontrassem. Ou então, o Lago Paranoá poderia invadir a cidade. E era assim.
Após um dia de trabalho, cálculos e caminhadas no cerrado, depois de o sol se
pôr, engenheiros deixavam outra vez as barracas de lona. Atulhados de
equipamentos astronômicos, consultavam o céu para conferir no espaço as
posições de cada ponto calculado no solo em relação aos astros.
Quem conta a história é o engenheiro e agrimensor Jethro Bello Torres,
que, à época, ocupava o cargo de chefe da divisão de projetos e cálculos do
Departamento de Estudos e projetos da Companhia Urbanizadora da Nova Capital,
mais conhecida como Novacap. Chefiado por Jofre Mozart Parada, ele foi
responsável, também, por elaborar um documento com 125 páginas com a memória
dos cálculos necessários para que a concepção da capital federal por Lucio
Costa pudesse virar realidade. Batizado de Memória de cálculos da urbanização
de Brasília, o levantamento, que está no Arquivo Público do DF, só foi
descoberto pela equipe de pesquisadores após o órgão ser convidado para a 14ª
Semana Nacional de Ciência e Tecnologia.
O Arquivo Público do DF criou um fundo documental com o nome de Jethro,
com a catalogação dos documentos guardados pelo engenheiro. Além da memória de
cálculos, o espaço dedicado aos papéis guarda diversas plantas e mapas da
região, que revelam todo o trabalho científico-matemático necessário para
garantir a cristalização do sonho de Juscelino Kubitschek. Alguns desses mapas
mostram, inclusive, os mais de 100 pontos registrados tanto pela equipe, quanto
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que serviram de
base para o cálculo de onde ficaria o Plano Piloto. Acompanha esse material uma
série de entrevistas dadas por Jethro, que, hoje, tem 89 anos e é o único
integrante vivo da equipe de Lucio Costa.
Na gravação, Jethro mostra parte dos equipamentos utilizados para fazer
as medições e os cálculos. Entre eles, uma bússola e um teodolito, que mostra
aos engenheiros os graus de inclinação de um determinado terreno. A medição
ajuda a calcular, por exemplo, o quanto de terra deve ser retirado de uma
determinada área. “O que o GPS faz hoje, nós fazíamos utilizando as constelações
que se apresentavam no céu de Brasília. Era a constelação de Carina, a
constelação de Cruxis, que é o Cruzeiro do Sul, a constelação do Triângulo
Autrale, que se apresentava, e outras que se utilizavam de acordo com os
relatórios enviados pelos engenheiros do Rio de Janeiro (RJ)”, descreve.
Ponto a ponto
O Correio teve acesso à partes da gravação. Nelas, Jethro fala com
eloquência dos cálculos, mapas, e trata as incursões noturnas em busca das
estrelas como uma atividade quase pífia — pelo menos, comum para o grupo de
homens indicados por Lucio Costa para tirar Brasília do papel. Todas as
marcações e os cálculos feitos pelo grupo e depois comprovados pelas estrelas
têm início em um ponto específico, cravado pelo IBGE em meados de 1954. O local
em questão, batizado de Vértice nº 8, fica a poucos metros do Cruzeiro no Eixo
Monumental, logo atrás do Memorial JK. Um marco, hoje laranja, no chão do
planalto. Com base nele e em outras demarcações posteriores do instituto, foi
possível definir todos os outros pontos.
“Então, nós fazíamos os pontos na terra, no planeta, detalhadamente, com
as coordenadas geográficas, astronômicas. (...) Primeiro vieram os marcos da
triangulação nacional. Sobre esses marcos, a empresa Geofoto partiu com uma
malha de mais de 140 marcos. Malha quadrada. Mais ou menos plano retangular,
por conta do terreno. Mas cada coordenada desses pontos era precisa, porque
foram amarradas nas coordenadas (...) do IBGE e conferidas astronomicamente”,
recorda. A empresa em questão era a primeira no país especializada em
aerofotogramétrica, fotografias aéreas feitas de forma tal a revelar os graus
de elevação e sublevação do solo, permitindo um mapeamento, para a época, muito
preciso.
Os cálculos da época foram feitos na ponta do lápis, número a número,
traço a traço, acompanhados de complexas figuras geométricas que encerravam em
si, muitas vezes de forma imperceptível para leigos, superquadras, setores da
cidade ou trechos dos eixos.Em diversas ocasiões, os engenheiros, entre eles
Jethro, faziam fila diante de calculadoras rudimentares, a manivela, apelidadas
de moedores de milho, para facilitar, ao menos, as contas mais básicas de cada
equação. No texto, é comum encontrar trechos que variam desde a definição de
velocidade das vias, até frases que se iniciam com: “As coordenadas do ponto
‘B’ serão calculadas em duas origens”; e que culmina com uma longa equação.
“Isso é interessantíssimo para engenheiros futuros e alguns geógrafos que
queiram, dar aulas. Modéstia à parte, esses escritos eram feitos, às vezes, à
mão”, comenta o agrimensor.
Programação
A 14ª Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, começa hoje e vai até
domingo (29), das 8h30 às 18h, no Pavilhão do Parque da Cidade. O estande do
Arquivo Público do DF exibirá um documentário com imagens da construção da
capital e trechos das gravações com o engenheiro e agrimensor Jethro Bello
Torres, durante esta semana, das 8h30 às 18h. Na quarta-feira (25), o
estande ficará aberto até as 22h, e no sábado e no domingo, das 9h às 18h.
No rumo da fumaça
Diretor de pesquisa, difusão e acesso e historiador do Arquivo Público
do DF, Elias Manoel da Silva demonstra encanto ao comentar o documento e a
aventura matemática vivida pela equipe de Lucio Costa na aplicação prática dos
traços que definiram o desenho da nova capital do país. Ele conta que, além de
se aproveitarem da amplitude do céu brasiliense para medirem ponto a ponto cada
coordenada geográfica que demarcaria uma localidade específica do plano piloto,
os engenheiros também fizeram uso de fogueiras e fumaça para ajudar a equipe de
pioneiros a abrir trilhas que, depois, serviriam para conduzir tratores que,
por fim, abririam o espaço necessário para cada via e quadrante de Brasília.
“Liderados por Jofre Mozart Parada, os engenheiros eram encarregados de,
a partir de cálculos feitos por Augusto Guimarães Filho, escolhido por Lúcio
Costa para chefiar a equipe do Rio de Janeiro, botar o projeto no chão. Os
cálculos eram enviados via rádio, cheios de estacas, e quem vinha para Brasília
trazia os escritos. Por isso, é possível dizer que, além de calculado na ponta
do lápis, o Plano Piloto foi todo medido pelas estrelas. Durante o dia, um
topógrafo ficava em um local demarcado e outro precisava entrar no cerrado, com
uma bússola, para encontrar o próximo ponto. Mas ele andava tanto, que ficava
além do campo de visão dos outros. A solução era acender uma fogueira”, recorda
Elias.
A fumaça da fogueira mostrava para os pioneiros o caminho que deveriam
seguir abrindo a trilha no meio do cerrado, muito antes das primeiras
edificações. Ainda assim, muitos se perderam e, em alguns casos, só foram
encontrados com o uso de aeronaves. “Os cálculos, então, eram auxiliados pela
astronomia e pelos sinais de fumaça — algo tão antigo quanto. É importante
lembrar que esse documento (Memória de cálculos da urbanização de Brasília)
está à disposição para pesquisadores no Arquivo Público”, diz o historiador.
(*) Luiz Calcagno –
Correio Braziliense