"É um pouco injusto dizer que aqui (STF) seja
um ninho de cobras, e que as pessoas não se gostam. Não é verdadeiro
isso”
Luís Roberto Barroso, 57 anos, trava
uma luta pela simplicidade e pela clareza. Ministro do Supremo Tribunal Federal
e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e do Uniceub,
ele, de forma direta, critica o atual jogo na Esplanada: “Abalar instituições
para obter resultados políticos imediatos é um pouco como perder a alma
imaginando que se está ganhando o mundo”. Indicado para o posto no STF pela
presidente Dilma Rousseff, Barroso afirma, entretanto, que a partir do momento
da posse, um ministro do tribunal perde o vínculo com o Planalto. “As pessoas
vivem para a sua própria biografia. Ninguém vive para a biografia dos outros.”
Mas faz uma consideração sobre a petista: “Acho que ela é uma pessoa de bem que
está vivendo um momento em que as coisas não deram certo. Então, acho que ela
deve estar vivendo um momento de grande sofrimento pessoal. Esse é o meu
sentimento”.
O ministro defende que o Judiciário e a
academia falem mais para a sociedade. “O discurso é um instrumento de poder, a
linguagem codificada e empolada exclui do debate quem não tem essa chave de
conhecimento”, diz ele, que chegou a propor, com outros integrantes do STF, um
pacto pela brevidade dos relatórios, cada vez mais extensos depois da
implementação da TV Justiça. Nascido em Vassouras, um município aprazível
localizado a 120km da capital fluminense, o ministro vai ao Rio toda quinta
para dar aula na UERJ. Volta para Brasília ainda na sexta. Isso explica as
fotos panorâmicas das praias e morros cariocas que decoram o gabinete do quarto
andar do anexo do Supremo. Ali, durante 90 minutos, Barroso falou com o Correio
sobre a “imoralidade do financiamento privado de campanha”, a descriminalização
das drogas, os direitos individuais e a crise nos estados.
O senhor se sente mais confortável na
sala de aula ou no tribunal?
O meu mundo é do debate de ideias, é o
que gosto de fazer. Sou professor, estou juiz. No Supremo, às vezes, você
consegue fazer um debate de ideias, às vezes não. Fiz toda a minha vida fora do
poder. O poder não me seduz. Às vezes, me inibe, não só pela cerimônia que as
pessoas passam a ter, mas também por me autoimpor limites do que posso dizer.
Até falo com certa liberdade. Não sobre processo que vou julgar e não comento
votos de colegas. Mas os meus votos eu comento, eu explico.
Quando o STF teve bons e maus
debates?
O problema é que temos uma pauta cheia.
Sou contra o modelo de atuação do STF. Com a pauta cheia, tem que fazer a fila
andar, então não é sempre que você consegue um debate maior. Às vezes, sim,
como nas drogas. Ali fiz um voto longo porque achei que precisava. Se você
assistir à sessão, os votos dos ministros Gilmar e Fachin são tradicionais, com
citações de autores e teses jurídicas. Fiz um voto para a sociedade, tentando
expor quais as razões pragmáticas e jurídicas eram importantes para
descriminalizar a maconha. A linguagem que você se dirige à sociedade é
diferente da linguagem interna. Não sou um sujeito que fala juridiquês, a
linguagem deve ser simples, clara e direta. Tento fazer que, no âmbito do
direito, a linguagem não seja instrumento de poder. A linguagem codificada,
empolada, é uma forma de excluir do debate quem não tem essa chave de
conhecimento.
A TV Justiça colabora para isso?
Tem fatos positivos, mas um dos fatos
negativos é o tempo dos votos, que aumentou. Isso já foi apurado. Sou orientador
de um trabalho que fez essa pesquisa. Mas já há um movimento interno de votos
mais enxutos. Nesses dias, fizemos uma reunião informal. Eu, o ministro Marco
Aurélio, o ministro Fachin e o ministro Teori. Fizemos um pacto de que os votos
sejam mais rápidos, como regra. O relator terá não mais do que meia hora. Com
um voto de meia hora, você consegue julgar algumas coisas no plenário.
A academia também tem um discurso
rebuscado, o tal discurso do poder...
Tem. Mas não na UERJ. Lá, tem uma
geração sobre a qual tive alguma influência, pessoas que foram meus alunos.
Conseguimos fazer uma revolução da simplicidade. Ali já se fala para o grande
público geral. O que não conseguimos foi fazer a revolução da brevidade. O
mundo jurídico é um mundo de pessoas que falam muito, que escrevem longamente,
pessoas que têm um certo prazer excessivo de ouvir a própria voz. Portanto,
essa é uma transformação cultural que exige uma mudança mais radical. Mas
chegaremos lá. Na vida acadêmica, estamos quase chegando a um padrão
internacional de qualidade. E, no geral, estamos chegando a um tipo de
amadurecimento institucional em que as questões relevantes aqui são relevantes
em todas as partes do mundo.
Por exemplo?
A descriminalização de drogas é um
debate mundial, como também as uniões homoafetivas, a morte digna, a
interrupção da gestação, o debate legítimo de atuação do STF e do Congresso.
Nesses 30 anos de democracia, amadureceram questões que nos inserem no debate
mundial.
O nosso Congresso, porém, parece
regredir.
Na democracia você tem espaço para
debates conservadores, liberais ou progressista. Não me incomodo com a pauta
conservadora. O que me incomoda um pouco no Brasil é a falta de qualidade de um
debate público, a falta de troca real, efetiva e ética de argumentos.
Por exemplo?
A questão da maioridade penal.
Não tenho simpatia pela ideia, mas não acho que seja uma briga de torcidas.
Existe demanda da sociedade por mudança na idade penal. É compreensível e
desejável que Congresso faça o debate. Numa democracia nenhum debate é tabu.
Agora quem é a favor da redução da maioridade penal tinha que apresentar as
seguintes informações: a mudança da lei vai atingir xis pessoas entre 16 e 18
anos; para abrigar essas pessoas, precisamos construir tantas vagas no sistema
penitenciário; essas vagas têm custo de xis milhões de reais. E aí a sociedade
vai fazer um debate esclarecido sobre a conveniência e o custo. O debate tem
que ser travado com dados, a partir de estudo de impacto legislativo. Mas tudo
se move em função de palavras de ordem, de rótulos depreciativos. O atual
debate se preocupa em desqualificar a posição do outro. É o debate do
“tenho mais virtudes, por isso o meu argumento é melhor”.
A imprensa estimula isso?
A imprensa, às vezes, conduz, mas
geralmente reflete o sentimento social. Alguns espaços na imprensa fomentam o
discurso radical, de desqualificação do outro. Sou militante da crença de que
quem pensa diferente de mim não é inimigo, é parceiro na construção de uma
sociedade plural. No plenário do STF, presto atenção ao que os outros falam e
trabalho o argumento, seja para aceitar seja para divergir. Vinícius de Moraes
tem uma frase que gosto: “Bastar-se a si mesmo é a maior solidão”.
No mensalão, o clima no plenário no
STF era acalorado. Isso mudou?
Não vivi esse tempo no STF, mas no
geral o debate aqui é cordial. Pode ter um ou outro mau momento, mas
acho um pouco injusto dizer que aqui seja um ninho de cobras, e que as pessoas
não se gostam. Não é verdadeiro isso. O que talvez seja verdadeiro é que o
tribunal tem uma dinâmica em que os ministros trabalham individualmente. Há
muitas razões para isso, de modo que essa crítica é fundada. Às vezes o
tribunal não fala com uma voz coletiva, como instituição. Por vezes, fala com
vozes individuais. Isso é uma circunstância. Um tribunal que recebe 50.000
processos por ano não consegue decidir tudo no colegiado. Por isso a maior
parte das decisões é monocromática, depois, quando é importante, é que se leva
ao plenário.
Como sair dessa situação?
Existe uma visão terceiro mundista que
precisamos superar: a de que tudo deve chegar ao STF. O Supremo, por sua vez,
tem uma certa voracidade de julgar coisas demais. Já temos competências demais
e não usamos bem os filtros para diminuir os recursos. Certamente excluiria
quase todas as competências que temos de foro privilegiado. Gostamos do foro
privilegiado, isso é um risco.
O senhor é contra o foro
privilegiado?
Radicalmente. Isso é um resquício
aristocrático e antirrepublicano que conservamos. Talvez o presidente da
República e os chefes de poder deveriam manter o foro. Fora isso, tenho uma
proposta que já está sendo veiculada que é de criação de uma vara federal
especializada, em Brasília, cujo titular seria escolhido pelo Supremo e que
teria tantos juízes auxiliares quanto a demanda exigisse. E das decisões desse
juiz caberia recurso no Supremo ou STJ. Isso tiraria um pouco a carga política
do STF ou de que uma decisão não cabe recurso. Outra coisa: o filtro da
repercussão geral está sendo mal utilizado. O STF não deveria admitir por ano
mais recursos extraordinários do que possa julgar. Tudo que não tenha sido
selecionado para ser julgado num prazo de um ano deve transitar em julgado. O
país vai ter que conviver com a ideia que vigora em todos os países civilizados
de que o acesso à Justiça e o devido processo legal se realizam em dois graus
de jurisdição. No Brasil, se criou uma cultura de que tudo tem que ter quatro
graus de jurisdição. É nefasto para a tramitação. Na vida civilizada, um
processo tem que acabar em seis meses, um ano. Se for muito complexo, 18 meses.
No Brasil, a média é superior a cinco anos. Isso também é um caso terceiro
mundismo explícito: a dificuldade de reconhecer que existe um problema, e
enfrentá-lo abertamente.
O protagonismo do STF está ligado à
falta de ação do Legislativo e do Executivo?
É o fenômeno da judicialização. Há uma
certa judicialização da vida em geral, mas vou cuidar apenas do STF. Em algumas
dessas matérias controvertidas, o Legislativo e o Executivo não conseguem
produzir consensos. Temas como casamento de pessoas do mesmo sexo, interrupção
da gestação, sistema penitenciário, que é uma minoria invisível que não
consegue mobilizar as maiorias políticas, muitas vezes não são resolvidos na
administração ou no Congresso. Mas, como os problemas surgem na vida real e
existem litígios, elas acabam chegando no Judiciário, que atua mesmo não
havendo lei. Às vezes, há uma certa queixa de que há uma judicialização de
questões morais ou da política. Isso só acontece quando o Congresso não a age.
Quando o Congresso atua, o STF não tem uma posição ativista. Temos como regra
de uma posição de autocontenção. Por exemplo, nas pesquisas com células-tronco
embrionárias, o STF deu a última palavra. É verdade, mas o STF deu a última
palavra porque o procurador-geral questionou a lei que autorizava as pesquisas.
De modo que a matéria foi judicializada, mas a posição do Supremo não foi
ativista. Você tem decisões mais proativas geralmente quando o Congresso não
atua, como foi o caso de uniões homoafetivas, interrupção da gestação e o
nepotismo. Uma decisão um pouco mais proativa foi a que ainda está em curso que
foi a decisão de descriminalização da maconha. Nesse caso, existe uma lei que
criminaliza o porte, inclusive para consumo pessoal. Essa é uma decisão um
pouco mais ativista. E um pouco mais contra majoritária porque ela não apenas
invalida uma lei, mas também porque não corresponde à posição da maioria da
sociedade. Por isso, ao votar, em vez de usar uma argumentação interna, usei
uma técnica de fazer um diálogo com a sociedade para demonstrar as razões
pragmáticas e jurídicas pelas quais a política de guerra às drogas não deu
certo, nem no Brasil nem em lugar nenhum.
E qual o retorno que o senhor
recebeu?
Nem sempre a decisão correta é a mais
popular. Nosso papel é fazer o que é certo. Ainda assim tenho uma preocupação
de manter um diálogo com a sociedade. Por exemplo, sou relator da execução do
processo do mensalão. Em determinado tempo de prisão em regime fechado, uma
pessoa tem direito de progredir para o semiaberto, depois que completa um tempo
no semiaberto vai para o aberto. Isso vale para todos, para os réus comuns e
para os réus que sociedade não gosta.
Mas as pessoas nem sempre entendem.
Sim. As pessoas nem sempre conseguem
entender. Precisava dar uma entrevista para explicar a progressão da pena. O
sistema no Brasil parece mais leniente. Essa é uma questão do sistema
penitenciário brasileiro. É quase um sistema de rodízio. Mas, se a sociedade
brasileira quiser um direito penal mais duro, e esse também é um debate público
do qual a gente não se deve furtar, ela precisa saber que precisa alocar mais
recursos no sistema. Endurecer o sistema penal custa mais caro.
O sistema penal do país é um
desastre?
É um sistema que reproduz falhas
históricas da formação nacional em matéria de desigualdade e em matéria de
deficiência estatal. É um sistema feito para pegar pobres. Funciona assim em
parte por causa da legislação, em parte por causa da jurisprudência e em parte
por causa da cultura do país. Continua a ser muito mais fácil no Brasil você
prender um menino com 100 gramas de maconha que prender o empresário por um
golpe de R$ 10 milhões. O sistema de prescrição favorece o momento que você
pode começar a execução da pena. A decisão do STF de exigir o trânsito em
julgado que algum momento precisa ser revista para você poder executar as
penas. No mundo todo basta decisão de primeiro grau ou de segundo grau. No
Brasil, acho que o poderíamos ficar no segundo grau. Quando STF estabeleceu
que, mesmo depois segundo grau, não podia prender, teria que esperar o trânsito
em julgado, todos os advogados criminais se tornaram, por dever de ofício,
pessoas que prolongam um processo indefinidamente para impedir a prisão do cliente
e ter a prescrição. Então depois da decisão final do Tribunal de Justiça você
tem um interminável capítulo. São recursos atrás de recursos, geralmente
infundadas para conseguir a prescrição. Não é culpa dos advogados, eles estão
fazendo o papel deles de defender os clientes. A lei é que é um desastre. Se
você mudar a prescrição e o momento em que você pode começar a executar a pena,
mudar o sistema de recursos para impedir abusos, você promove uma pequena
revolução jurídica. Em seguida, tem que fazer uma revolução cultural, que é
entender que rico pode ir para a cadeia se tiver cometido crime.
As prisões que Sérgio Moro determinou
mudaram um pouco essa visão?
O mensalão e o petrolão mudaram um
pouco a regra geral. E fizeram com que o relator do mensalão e agora o juiz do
petrolão tenham se tornado símbolos relevantes e positivos para a Justiça.
Portanto, se tornaram heróis. Você só precisa de heróis quando as instituições
não estão funcionando. Porque se a regra fosse a punição de corruptores e
corruptos, quem concretiza isso não se tornaria herói. Estaria fazendo a rotina
da vida. O sistema penal é ruim, é manso com os ricos e duro com os pobres.
Quem quebra essa lógica vira herói. Não tenho nada contra heróis. Mas acho que
isso é uma demonstração de que o sistema não funciona bem.
O senhor concorda com o tempo das
prisões temporárias da Lava-Jato?
Não posso, não devo e não quero
comentar matéria que vá chegar ao STF. Mas posso comentar o sistema: existe um
número excessivo de pessoas presas temporariamente. Não é bom. Mas a causa
disso é que, como os processos não terminam nunca, o Judiciário acaba usando a
prisão temporária em intensidade maior que seria o desejado porque muitas vezes
essa acaba sendo a única punição. É ruim um sistema que tenha esse excesso de
prisão temporária como é ruim um sistema em que a punição não chega porque o
processo não termina.
O STF, ao analisar o rito do
impeachment, é um exemplo de judicialização?
Não vou comentar a tramitação do rito
do impeachment porque é uma matéria que provavelmente vai chegar aqui. O que
posso dizer é que o rito de impeachment não é uma questão interna corporis do
Congresso. Rito de impeachment é uma questão constitucional. Portanto, não há
nada de surpreendente em que o ministro Teori ou a ministra Rosa tenham
produzido decisões nessa matéria, não estou entrando no mérito, estou apenas
dizendo que não há nada de surpreendente nisso. Sobre o mérito do impeachment,
não posso falar, mas gostaria de dizer que o Brasil conseguiu em 30 anos de
poder civil construir instituições. E instituições que estão se consolidando e
que têm servido bem ao país. Não se sacrificam instituições no altar da
política. Portanto, o ímpeto de abreviar um governo que eventualmente tenha se
tornado impopular não pode comprometer as conquistas institucionais que
obtivemos nesses 30 anos. Abalar as instituições para obter resultados
políticos imediatos é um pouco como perder a alma imaginando que se está
ganhando o mundo.
Que instituições são essas?
As regras do jogo democrático, a
legalidade constitucional, os ritos. O problema é o sistema de governo
hiperpresidencialista que, no Brasil e na América Latina, é uma usina de crises
periódicas.
Como assim?
Em 2006, escrevi uma proposta de
reforma política. Um dos capítulos era mudar o sistema de governo do
hiperpresidencialista para um semipresidencialista, como na França e em
Portugal.
O senhor apoia o parlamentarismo?
O sistema semipresidencialista é um
meio-termo entre o presidencialismo e o parlamentarismo. Funciona assim: o
presidente é eleito diretamente, essa é uma demanda da sociedade que a gente
não pode nem quer mudar, a eleição direta para presidente. Com a eleição
direta, o presidente tem uma carga de legitimidade pessoal e conserva algumas
competências importantes, como nomear ministros de tribunais superiores,
comandantes militares, embaixadores, ter iniciativa de projetos de lei e nomear
o primeiro-ministro. Só que o primeiro-ministro dependeria de aprovação da
maioria do Congresso. Esse primeiro-ministro seria chancelado pelo Congresso e
conduziria o dia a dia da administração. E o dia a dia da política, esse front
inóspito de batalhas. Se levassem a uma perda de sustentação política desse
primeiro-ministro, seria destituído pelo Congresso e o presidente enviaria um
novo nome para ser aprovado. O presidencialismo não tem essa forma. Se o
governo estiver erodindo a base, a sua legitimidade democrática corrente, você
não tem uma forma de destituição política.
Mas não há o impeachment?
Para conduzir o impeachment nos termos
da Constituição, você tem que imputar um crime ao presidente da República e
muitas vezes não é o caso. Não há um crime político, o que há é uma perda de
sustentação política e o presidencialismo não tem mecanismo para lidar com
isso.
Esse formato resolveria a atual
crise?
Certamente. Propus em 2006 para viger
oito anos depois. Para não mexer com nenhum interesse posto na mesa, vigoraria
depois de dois mandatos. Teria entrado em vigor em 2014. Não estaríamos
passando pelo que estamos passando. Nós agora, numa prova de maturidade, temos
que pensar lá na frente. Daqui a pouco a crise vai passar. De uma forma ou de
outra. Temos que pensar quais são as melhores instituições ali na frente, para
dois, quatro, oito, 10, 20 anos.
Com os presidentes da Câmara e do
Senado enrolados, a classe política tem credibilidade para fazer essa reforma
política?
Não sou um comentarista político. Sou
um defensor das instituições. Qual o problema institucional do sistema político
brasileiro? Ele vive uma crise dramática de legitimidade. O sistema brasileiro,
de eleição para a Câmara, é proporcional, com o voto em lista aberta. É uma
desastrosa combinação. Pela seguinte razão: menos de 10% dos deputados são
eleitos com votação própria. Mais de 90% são eleitos pela transferência de
votos do partido ou coligação. Cada partido faz um número de representantes na
Câmara proporcional à sua votação, de acordo com o quociente eleitoral. O que
acontece? Como menos de 10% são eleitos com votação própria, o eleitor, em
última análise, não sabe quem elegeu. Depois, o eleito a partir de uma
transferência de votos partidários, também não sabe quem o elegeu. O eleitor
não sabe quem elegeu, portanto, não tem de quem cobrar, e o eleito não sabe
quem o elegeu e não tem a quem prestar contas. Um sistema que não resiste a um
teste de legitimidade democrática. Este é o grande fator de descolamento entre
a classe política e a sociedade, que tem que cobrar isso por mobilização.
O STF não pode fazer uma reforma política abrangente. E o Congresso não
pode ou não consegue fazer. Quando, em maio e junho de 2013, a sociedade
foi às ruas, antes daquilo degenerar era a sociedade pedindo
transformação. Foi exatamente no momento da minha nomeação. No dia em que fui
ao Congresso, entregar aos presidentes do Senado e a da Câmara o convite para a
minha posse, estavam todos reunidos pensando numa reforma política profunda,
cobrada pela sociedade. A presidente sinalizou um caminho, seja constituinte
exclusiva, seja plebiscito. A classe política, compreensivelmente, se insurgiu
porque aquilo a excluía. O povo saiu da rua e a reforma não chegou.
Como fazer para essa reforma sair?
Acredito em mobilização cívica, social.
Ordeira, com uma proposta clara. A Lei da Ficha Limpa é um precedente de
mobilização em que se conseguiu algum resultado positivo. A reforma política, a
que precisamos, depende de mobilização. Precisamos de uma reforma que,
primeiro, dê legitimidade à representação popular; segundo que barateie o custo
das eleições. O protagonista da democracia tem que ser o cidadão, não o
dinheiro. Não é jogo de póquer. Terceiro, é preciso um sistema político que
gere maiorias.
O senhor pode explicar melhor?
O voto proporcional em lista aberta
gera o descolamento. Sou defensor do voto distrital misto inspirado pelo modelo
alemão, em que metade da Câmara é eleita nos distritos e outra metade no voto
partidário, de modo que o eleitor tem dois votos, no seu distrito. Aqui, no
caso, a Ceilândia seria um distrito, em que cada partido teria seu candidato. O
mais votado no distrito entraria. Isso tem a consequência positiva de aproximar
o eleitor do eleito, saber quem é o representante daquela comunidade. Será uma
mudança revolucionária no Brasil.
E a formação de maiorias?
O país precisa mudar o sistema
partidário. Precisamos de cláusula de barreira e proibir coligação. Essas
providências em relação ao sistema partidário acabariam com essa pulverização
partidária, minimizar os efeitos das legendas de aluguel, em que, respeitando
as exceções que confirmam a regra, os partidos são criados para acesso ao fundo
partidário, que muitas vezes é apropriado privadamente. Tem também o
acesso ao tempo de televisão, que é frequentemente negociado com legendas
maiores.
E o financiamento?
Num sistema em que se barateie o custo,
o financiamento passa a ser secundário. Como cidadão, prefiro o financiamento
misto, em que a participação privada seja de pessoa física.
Foi o que foi aprovado pelo STF, não?
Foi, mas o STF não tem condições de
faze ruma reforma política. Primeiro, porque talvez não houvesse consenso aqui
dentro. Pontualmente, quando as coisas chegam aqui, o STF se manifesta, mas não
tem como fazer uma mudança sistêmica por acórdão. Para o bem e para o mal, isso
não é possível. Chegou aqui essa ação da OAB. O sistema que vigorava era uma
imoralidade completa. Porque não havia nenhum tipo de limitação relevante à
participação de empresas e à circulação de dinheiro no sistema eleitoral. A
ação da OAB pedia que se declarasse a inconstitucionalidade de empresa
participar do financiamento eleitoral. Pessoalmente, não tenho simpatia pela
ideia de empresa participar do financiamento, mas não acho que isso seja
inconstitucional. A decisão, se a empresa pode ou não participar, é, a meu ver,
uma decisão política a ser tomada pelo Congresso. Esta legislação que
declaramos inconstitucional é inconstitucional porque não impõe restrições
mínimas à participação das empresas. Quais seriam essas restrições mínimas?
Primeiro, não pode financiar todos os candidatos como aconteceu na eleição: a
mesma empresa doava para Dilma, Marina e Aécio. Se você estar doando para os
três, não é o exercício de um direito político. Se está doando para os três, ou
você foi achacado ou está comprando favores futuros. Qualquer uma das duas
possibilidades é péssima. Além disso, se a empresa doou para campanha, ela não
pode depois contratar com administração pública, porque, senão, o favor privado
que foi a doação de campanha vai ser pago com o dinheiro público. E há uma
terceira restrição mínima, empresa que recebe financiamento do BNDES, ou
financiamento público de qualquer natureza também não pode doar para a campanha
eleitoral porque está usando dinheiro público. Tudo isso podia.
Como financiamento de pessoa física,
pode haver uma caça ao CPF, com previu o ministro Gilmar Mendes?
Risco de corrupção existe em qualquer
modelo. Esse modelo de empresa privada pode participar gerou o maior escândalo
de corrupção da história do país. Quase tudo na vida pode ser usado para o bem
e para o mal. Até amor, se você usar a quantidade errada ou no lugar errado,
vai ser ruim. O risco de haver corrupção não me impressiona porque pode haver
em qualquer modelo. No modelo que tínhamos, ela está comprovada. Agora, não
temos tradição nesse modelo proposto? É verdade. Portanto, vamos tentar criar
um sistema político de mobilização da cidadania. E não mobilização do sistema
político do grande capital em busca de negócios no novo governo. Precisamos de
menos estado e mais sociedade, precisamos de um capitalismo com mais risco e
menos financiamento público. Um dos problemas atuais do Brasil é que o estado
não cabe mais na sociedade e a sociedade não tem mais recursos para financiar
esse estado. Vamos ter que viver um processo imenso de mudança de paradigma no
Brasil. Todos os estados da federação estão quebrados. Quase todos estão com
dificuldade de pagar a sua folha de pagamento, pelas transferências
constitucionais obrigatórias que tem que fazer, pelo custeio, hospital,
segurança pública, penitenciária. Esse três itens estão valendo por mais de
100% da arrecadação. Portanto, não sobra um vintém para investir em saneamento,
que é a principal política, transporte, melhoria das rodovias. Criamos um
Estado que a sociedade não consegue mais sustentar.
O que o leva a pensar que a crise vai
passar rapidamente? Vai passar com Dilma?
Minha bola de cristal está meio
embaçada… (risos)
O senhor foi muito veemente ao
afirmar que a crise passaria...
Da cabala judaica ao budismo, um dos
slogans é “tudo passa”. Para bem ou para mal. Espero que passe rapidamente.
Vivemos uma crise política e econômica, felizmente não vivemos uma crise
institucional.
E uma crise ética, não?
Vivemos uma crise ética, tanto no
espaço público quanto no espaço privado. Embora isso seja um lugar-comum, acho
que os momentos de crise são os momentos de grandes mudanças. E acho que a
atual crise brasileira é um momento de mudança de paradigma. A crise econômica
envolve um pouco a questão de que a sociedade não está cabendo dentro do
Estado, que em parte é a crise de um país com demandas simultâneas, que não
conseguiu conter os seus gastos.
Qual é a gravidade dessa crise ética?
Vamos ter uma mudança de patamar,
espero. É a crise de uma sociedade que amadureceu, se tornou mais exigente, e
que não se satisfaz mais com essa história de país do futuro. Quer fazer um
país de verdade aqui e agora. Portanto, quer decência na política, quer
serviços públicos de qualidade, quer que não se gaste mais do que se arrecada,
porque a consequência é a inflação. Temos mudar também na ética privada, é
preciso criar uma cultura na sociedade de boa fé objetiva, de não passar os
outros para trás, de respeitar a fila, não ultrapassar pelo acostamento. O
poder público muitas vezes litiga na Justiça recorrendo indefinidamente sem
razão para procrastinar e depois não paga o precatório. Você cria uma relação
pervertida entre o cidadão e o Estado. O Estado não é honesto com o cidadão,
então o cidadão não se sente obrigado a ser honesto com o Estado.
Existe uma percepção de que a
presidente teria força dentro do STF por conta dasindicações. E um dos casos
citados, até porque é um dos mais recentes, é o do senhor. Como vê essa
questão?
Evidentemente, quando um presidente
indica um ministro, ele tem poder. Ele tem ali 20 pessoas qualificadas, mas o
presidente escolhe aquele com quem, por alguma razão, tem mais afinidade. Isso
faz parte da nomeação de ministros em qualquer lugar do mundo. O modelo
brasileiro é de escolha pelo presidente
"O sistema penal é manso com ricos e duro com pobres. Quem consegue quebrar essa lógica vira herói”
"O sistema penal é manso com ricos e duro com pobres. Quem consegue quebrar essa lógica vira herói”
"Todos os estados da federação
estão quebrados. Quase todos estão com dificuldade de pagar a sua folha de
pagamento”
"Na vida civilizada, um processo tem que acabar em seis meses, um ano. Se for muito complexo, 18 meses”
"Na vida civilizada, um processo tem que acabar em seis meses, um ano. Se for muito complexo, 18 meses”
Sou um carioca que adora
Brasília
Nasci em Vassouras (RJ). Sou filho de
mãe judia e pai católico, cresci frequentando igrejas e sinagogas, me sinto
confortável nos dois ambientes. Aos cinco anos, me mudei para o Rio, onde o meu
pai fez um concurso para promotor de Justiça. Lá fui jogador de vôlei e
bicampeão carioca. Aos 15 anos, morei com uma família presbiteriana, quando fiz
intercâmbio nos EUA. Depois, quando fiz meu mestrado em Yale, tinha um vizinho
de porta que era da Arábia Saudita. Aprendi ao longo da minha vida que,
independentemente de origem e de religião, as pessoas são todas iguais. Isso
faz parte da minha filosofia de vida de maneira muito arraigada. Construí minha
própria religião, que tem novo testamento, tem Aristóteles, tem Kant, tem Buda,
é uma religião que montei para mim, medito diariamente de manhã. Me mudei para
Brasília antes de vir para o STF. Estou aqui há uns oito anos, já advogava no
STF e no STJ, e, quando meus filhos entraram na adolescência, falei para a
minha mulher para considerarmos a possibilidade de mudança. Adoro o Rio, é uma
cidade exuberante, mas, para criar filhos, aqui é excelente. Hoje, minha filha
estuda direito na FGV do Rio. As pessoas identificam Brasília pela política,
mas a cidade tem uma vida que não tem nada a ver com a Esplanada. Gosto
das pessoas, do pouco trânsito, do pouco barulho.
Por: Ana Dubeux, Denise
Rothenburg, Helena Mader e Leonardo Cavalcanti – Correio
Braziliense – Foto: Breno Fortes/CB/D.A.Press