"Já dei tanta
entrevista que tenho a minha vida escaneada, mexida e remexida. O povo não está
mais interessado nessa besteira que digo mais não." Ozanan é assim:
debochado, brincalhão. Quase não pontua as próprias frases, tamanha a
velocidade com que as memórias chegam à mente. A fala, no entanto, é mansa.
Cearense, mesmo depois de quase cinco décadas em Brasília não perdeu o sotaque
nordestino, o que torna impossível esconder as origens. É um verdadeiro
contador de causos e boas histórias não lhe faltam. Ri alto. Solta palavrões.
Diverte-se com as próprias piadas. E garante ter "papo para um milhão de
horas". Disso ninguém duvida.
O agrônomo Francisco Ozanan Correia
Coelho de Alencar vai completar 72 anos. Quase 40 deles dedicados a embelezar a
capital. Ele começa a entrevista exibindo um livro. Entre aquelas páginas,
mostra fotos da Brasília que o acolheu: terra batida, vermelha, sem verde.
Tanta poeira que deixava colarinhos avermelhados e olhos ardidos. Em outra
parte da publicação, exibe a capital atual, com espaços arborizados e floridos.
Emociona-se ao saber que foi figura essencial dessa mudança de paisagem.
Orgulha-se de ter visto o sonho de Lucio Costa tornar-se realidade. O urbanista
queria que "os prédios residenciais nascessem como da clareira de uma
floresta", como escreveu no relatório do Plano Piloto. Assim foi feito.
Ozanan trabalhou no Departamento de
Parques e Jardins (DPJ) da Novacap, em uma época que as plantas morriam nesse
cerrado. Ele e sua equipe trouxeram mudas de fora, testaram a natureza até
negociar com ela o que brotaria por aqui. A cidade floresceu. Depois, o
cearense foi diretor do DPJ, plantou árvores, flores, gramas, salvou outras.
Tem o buriti, da praça de mesmo nome, como grande proeza. Ele o salvou depois
que um desajustado quis cortá-lo por causa da rebeldia política. Também
transplantou mangueiras no Museu do Índio que dão frutos até hoje. Até ele vê
como impossível a tarefa de diferenciar as árvores que estão em local de
nascença e as que mudaram de lugar.
Ozanan diz que nunca se importou com o
poder, mas conheceu gente influente. Trabalhou com vários governadores. Tem na
sala de casa um quadro feito para ele por Oscar Niemeyer. O desenho foi
presente depois de um encontro sobre as tais mangueiras que deveriam ser salvas
antes de construir o Museu do Índio. Conheceu Lucio Costa e Burle Marx. Foi da
turma dos que transformaram o chão poeirento da cidade em jardim florido e
gramado.
Hoje, está aposentado da lida de pôr a
mão na massa. Diz que a idade já não permite. Mas o amor pelas plantas
permanece. Lamenta os jardins da capital estarem meio "descuidados",
mas reconhece a beleza da cidade que escolheu como sua: "Claro que escolhi
ficar aqui. Não tem a menor possibilidade de voltar para o Ceará. Pelo amor de
Deus! E olha que gosto demais de Fortaleza. Todo ano eu vou. Uma vez ou duas.
Vou para passar uma semana. Depois, já estou doido para voltar."
ELE POR ELE
"Meu nome, por
incrível que pareça, é Francisco Ozanan Correia Coelho de Alencar. Tudo isso. É
coisa de cearense. Acho que no dia do registro civil, o tabelião, lá da
Barbalha, estava bêbado, porque meus irmãos não têm esse nome assim. Só eu e o
gêmeo comigo temos um nome comprido desse jeito. Ele também é Francisco. Foi
promessa da minha mãe. Você já pensou o que é, 70 anos atrás, ter um parto
duplo no interior do Ceará, em uma cidade que não tinha médico, que não tinha
coisa nenhuma? A Barbalha era uma aldeia. Sou casado com uma senhora também de
lá. Começamos a namorar quando eu tinha 15 anos e ela, 13. Fui estudar em
Fortaleza e disse para ela: ‘Vou me casar com você, só não sei quando. Se você
quiser esperar...’ Aí foram quase nove anos de enrolação... Eu me casei em
1951. Entre a enrolação de namoro e o casamento são 53 anos, 44 de casado. Como
enrolei essa mulher! (risos) Tenha vergonha! Meu Deus, meus filhos já se
casaram e se separaram, e nós dois aqui. (risos)"
BRASÍLIA
"Fiz agronomia na Universidade
Federal do Ceará. Tinha um professor, Melquíades, da cadeira de zoologia, muito
duro, reprovador, odiado pelos alunos. Ele passou um trabalho em que cada um
deveria escolher falar de um animal. Entreguei o meu sobre um rato de cana da
região do Cariri. Um dia, me avisaram que as notas estavam na secretaria. De
longe, vi meu trabalho com um bilhetinho de nota 10. Ele me disse: ‘Sabe por
que eu dei 10 pra você? Seu trabalho é absurdamente original e eu não gosto de
xerox. Você quer trabalhar comigo?’ Chega gelou meu corpo todinho. Nasceu uma
amizade que perdura até hoje. Terminei o curso em 12 dezembro de 1968. No dia
13, saiu o AI-5. Estava com a maior esperança de que ia ficar lá (na
universidade). Mas a vida é totalmente decidida pelo imponderável. Com o AI-5
não houve colação de grau, não houve festa. O diretor chamou a gente no
gabinete dele e disse para cada um rezar um pai-nosso. O AI-5 foi o
endurecimento da revolução. O professor Melquíades falou assim: ‘Você quer ir
para Brasília? Um diretor de um departamento de parques e jardins (Stênio de
Araújo Bastos) é muito meu amigo e pediu para indicar um rapaz que quisesse.
Aquilo lá é um desafio. Você vai, se gostar, fica. Se não gostar, trabalha uns
dois meses e volta.’
A CHEGADA
"Meu irmão me deu o dinheiro da
passagem. Vim, cheguei, peguei um táxi do aeroporto. Passei pelo Eixo e
perguntei ao motorista qual era o nome daquela rua e ele disse que não era rua,
era o Eixo Monumental. Então pensei: ‘Estou lascado, essa cidade é
completamente diferente’. Eu me lembro perfeitamente da tarde em que fui
assinar meu contrato. Ali na Esplanada dos Ministérios subia uma poeira que
nunca tinha visto na minha vida. Era um barro vermelho e uns redemoinhos... Os
ventos se encontravam e faziam ‘timmm’. Tinha uma chaminé vermelha que você via
lá de longe. O povo chamava aquilo de Lacerdinha, em alusão a Carlos Lacerda,
governador da Guanabara. O colarinho da camisa, às vezes, ficava vermelho e eu
andava com um vidro de colírio para botar nos olhos porque entupia de terra, da
gente que trabalhava nas obras. Aqui era que nem dr. Stênio me disse: ‘É pegar
ou largar.’ O desafio era grande demais, mas eu não ia voltar não porque um dia
isso aqui ia ser bom. Aí não larguei e me apaixonei por Brasília."
PODER
"Eu me tornei chefe do
Departamento de Parques e Jardins depois de trabalhar com dr. Stênio por 10
anos. Eu não queria de jeito nenhum, não tinha essa ambição de assumir a parte
administrativa. Escolhi um método meu para administrar: nunca fechei a minha porta.
Quem quisesse entrar podia: cachorro, gente. O máximo que pode acontecer é
ouvir um não, mas nunca tratava ninguém mal e, se pudesse ajudar, ajudava.
Nunca me preocupei com o poder. Sou a pessoa mais feliz do mundo com o que fiz
profissionalmente. Tenho muitos defeitos e, depois que me aposentei, enxergo
melhor os defeitos. Mas foi o que eu podia fazer. Nesses 40 anos, que passei na
Novacap, tirei duas férias. Não é que me proibiam de tirar férias. Era tesão
que eu tinha por aquilo. Uma verdadeira paixão. Não sei se é virtude ou
defeito, mas é verdade. Tinha tesão, paixão e ainda tenho."
APOSENTADORIA
"Tenho seis anos de aposentado.
Abri uma empresinha que planta grama com dois colegas que trabalharam comigo em
mais de 30 anos na Novacap. Não me aposentei com a intenção de trabalhar. Eu
disse: ‘Vou ficar em casa e aproveitar o resto da minha vida.’ O primeiro e o
segundo mês, achei bom demais; no terceiro, começou a me dar um tédio louco e
eu já estava aprendendo a fazer bolo com a Ana Maria Braga. Falei: ‘Cacete, vou
ficar doido.’ Disse para a mulher que não ia ficar em casa. Juntei-me com esses
dois colegas e fizemos uma empresinha. Dá mais raiva do que a gente ganha de
dinheiro. Fizemos uma obra que o Agnelo (ex-governador) não pagou e lascou a gente...
Mas é bom que a gente se reúne, bate papo e fala das besteiras de antigamente,
conta causo e movimenta a cabeça. Hoje, apesar da minha aposentadoria, ainda
tenho, como minha mulher cunhou, o mesmo adultério explícito, que eu tinha com
as áreas verdes de Brasília. Você acredita em um negócio desse? Passo nos
cantos e vejo as coisas erradas. Não vou ligar lá e dar opinião, mas vejo esses
jardins se acabando." Assista o vídeo:
Fonte: Cristine Gentil , Flávia Duarte , Luís Tajes – Correio Braziliense – Foto: Luis Tajes/CB/D.A.Press
Salve, senhor Ozanan! Moro em Brasília há quase 11.000 dias e, na maior parte deles, quando saio de casa, eu me vejo contemplando alguma de suas árvores, algum dos seus gramados, algum dos seus canteiros, e elevo meu agradecimento a você, acredita? Nunca aos arquitetos e urbanistas, mas a você e aos milhares de mãos que, nessas décadas, vêm mantendo os verdes e as flores de Brasília para mim! Sinto-me pessoalmente privilegiada pela dedicação de vocês, e por isso meu agradecimento é sempre pessoal quando contemplo suas belezas: "Grata, senhor Ozanan". Imensa admiração e gratidão!
ResponderExcluirObrigado por tudo!
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