"O Honestino
Guimarães tem o nome em três lugares da cidade, inclusive na ponte, que deveria
se chamar Ponte Joaquim Cardozo por uma questão de justiça"
O professor José Carlos Coutinho é uma
das figuras mais admiradas e elegantes de Brasília. Chegou à cidade em 1968
para participar da reestruturação do Instituto de Artes da Universidade de
Brasília (UnB). Veio para ficar seis meses, mas se envolveu de tal maneira que
se tornou cidadão brasiliense de corpo e alma. Conhece a capital na intimidade,
desde os tempos dos saraus do Sábado à tarde, no apartamento de Raimundo de
Brito – matriz do Clube do Choro – até a produção atual. Os alunos brincam que
Coutinho tem o poder da ubiquidade, pois, certa noite, foi visto em três
lugares ao mesmo tempo. Nesta entrevista, Coutinho evoca instantes epifânicos,
critica Brasília e afirma que a educação sobre patrimônio histórico e cultural
deveria começar pela classe política.
Como chegou a Brasília e qual impressão mais marcante que ficou da cidade?
Sou de uma geração de estudantes de arquitetura que acompanhou Brasília
com a maior atenção. A gente sabia de tudo por meio da revista Brasília, que,
depois, tive a oportunidade de tombar quando ocupei o cargo de Diretor do
Patrimônio Histórico e Cultural. Em 1962, Edgar Graeff, um dos meus grandes
mestres, veio para Brasília a convite de Darcy Ribeiro para fundar a
Universidade de Brasília. Ele me convidou, mas o que vou fazer por lá? Só tem
poeira vermelha, trabalho como professor e abri um escritório de arquitetura.
Anos depois, em 1965, em reação à truculência do regime militar, 222
professores se demitiram coletivamente, entre eles o próprio Graeff. Eles
deixaram um vazio. O nível do curso caiu. Mas, em 1968, os estudantes
decretaram greve contra a queda dos padrões de qualidade. Honestino era um dos
líderes. Exigiram que se refundasse o curso de arquitetura e artes. Fui
convidado a participar do projeto em agosto de 1968. Chego aqui encontro o
Graeff; o seminário foi magnífico. Na véspera da volta, os alunos reuniram no
Hotel Nacional e disseram: “O projeto está ótimo, mas quem vai executar?”.
Senti-me provocado nos meus brios e dei uma de macho gaúcho: eu fico. Vim para
ficar seis meses e estou há mais quase 50 anos.
O
que o puxou para Brasília?
Encantei-me com o desafio do trabalho. 1968 foi o ano que não terminou,
segundo Zuenir Ventura. O que me atraiu foi a perspectiva de um trabalho
político, não no sentido partidário, mas da formação de uma geração
comprometida com o Brasil, que era a proposta de Anísio Teixeira e Darcy
Ribeiro para a Universidade de Brasília. Cheguei a Brasília com 33 anos, a
idade de Cristo, podia ser uma crucificação, mas resultou em ressurreição. A
gente conduzia e se alimentava desse projeto. O fato de esse grupo ser de
arquiteto e artistas estabeleceu uma comunhão. Passamos a tocha a uma nova
geração de estudantes e a mantivemos acesa.
Qual
a singularidade de Brasília?
Para mim, são muitas as singularidades. Naquele primeiro período, era de
implantação, o primeiro processo de formação da identidade de uma nova capital
do país. Escrevi um artigo que o ex-reitor José Geraldo gostou muito. Disse que
Lucio Costa criou as dimensões da urbis e da civitas, mas, aos poucos, estamos
criando a pólis, a apropriação do espaço para uma ação política generosa.
O
espírito utópico de Brasília se perdeu completamente?
Olha, em parte sim. Procuro acreditar que muita coisa restou,
principalmente na cabeça dos mais antigos. Costumo dizer nos seminários
promovidos pelo professor Aldo Paviani para discutir a cidade, que Brasília
nasceu tal como nasce uma criança, linda, rosada e cheirosa. Mas, com o
crescimento ficou com a cara do pai, o Brasil. Brasília não é o Brasil que
desejamos. Brasília é o Brasil. Tinha de conter todas as contradições e
desigualdades do país. Somos orgulhosos do DNA da cidade, cultuamos as
figuras que lançaram o idea mater de Brasília: Juscelino, Darcy Ribeiro, Lucio
Costa, Oscar Niemeyer e outros que são injustiçados.
Que
personagens considera injustiçados pela história de Brasília?
Vou citar o mais antigo: Auguste François Marie Glaziou. Ele veio ao
Planalto Central com a Missão Cruls e viu o lago antes de ele existir. Percebeu
que as nascentes dos diversos córregos poderiam formar um lago, bastava fechar
a garganta do Paranoá. Não tem sequer uma placa em qualquer ponto do lago com o
nome dele. Outro que é uma figura extraordinária de Brasília é o poeta,
professor, tradutor, caricaturista e engenheiro calculista Joaquim Cardozo. O
Honestino Guimarães tem o nome em três lugares da cidade, inclusive na ponte,
que deveria se chamar Ponte Joaquim Cardozo por uma questão de justiça. A
parceria de Joaquim Cardozo no cálculo das obras de Niemeyer é fundamental.
Todos os louros vão para Oscar Niemeyer. Isso ocorre com vários outros nomes da
equipe dele. Milton Ramos fez coisas lindas, tais como o Oratório dos Soldados.
Nauro Esteves projetou o Palácio do Buriti e o Hotel Nacional. Era de uma
humildade extraordinária. A Mariane Perreti só agora é reconhecida. Quase todos
consideram que a Catedral Metropolitana de Brasília é uma obra só do Oscar.
Perretti é a artíficie da luz, da cor, da leveza, do estado de bemaventurança
do interior da catedral. A própria UnB tem muita gente injustiça.
Quem
é injustiçado na história da UnB?
Só se fala em Darcy Ribeiro, mas a grande cabeça que concebeu a UnB foi
Anísio Teixeira. Darcy era encantador e sedutor, mas a ideia master era do
Anísio, que já tinha implantado um projeto inovador da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
Há
os que dizem que a UnB entrou em processo de decadência. O senhor concorda?
Não, a universidade está em transformação. Ainda é uma das melhores do
Brasil. Está passando por uma crise de crescimento, grande, poucos recursos,
envelheceu a proposta de ensino. É um momento delicado, mas parece que ela está
consciente disso. Ela reflete também todas as contradições e crises da
sociedade. O pior que pode acontecer é se tornar reduto de ideias conservadoras
e retrógradas. A universidade tem o dever de ser progressista.
Como
é a história de que o senhor é dotado do dom da ubiquidade?
Aqueles tempos eram pioneiros, mas, agora, a cultura em Brasília já está
em fase de consolidação. Que saudade dos tempos em que a gente só tinha uma
opção de programa cultural em Brasília. Agora, a gente tem muitos dilemas
culturais na hora de sair de casa para escolher aonde vai. Casei, viuvei e
retomei a liberdade de movimentos. Sempre gostei de participar da vida
cultural, vou a muitos lugares. Os meus alunos criaram uma página na internet
sob o título Eu vi Coutinho, narrando os encontros comigo nos eventos
culturais. E, realmente, houve casos em que me viram na mesma hora em lugares
diferentes, me atribuindo o dom da ubiquidade. É um bulling fraternal que
fizeram comigo. Quando recebi o título de professor emérito da UnB, o reitor
José Geraldo disse que, se eu estivesse presente, era a certeza de que o evento
era bom.
Que
história vivida na noite de Brasília poderia evocar?
Em uma das vindas a Brasília, em 1985, convidamos Lucio Costa para
conhecer o bar Moinho, na 114 Sul, que era uma espécie de Beirute do B. Foi um
momento lindo que guardo na memória. A filha dele, Maria Elisa Costa, estava
lá. Lucio foi conhecido pelos frequentadores, eles prorromperam em uma salva de
palmas. Uma moça levantou-se da mesa e deu-lhe um beijo na careca. Era o
reconhecimento de uma geração que começava a nascer em Brasília e foi
reconhecida. Aproveitei para lhe perguntar onde estava a projeção de que a
cidade teria 500 mil habitantes. Sempre ouvi isso, mas a única referência era
uma consulta de um dos concorrentes ao projeto de Brasília que perguntou para
quantas pessoas se destinava a cidade. Quando cheguei em 1968, já se criava
Taguatinga, Sobradinho e Gama como alternativa do excedente da população. Na
verdade, era uma exclusão, pois Brasília estava vazia e não abrigava mais a
população pobre. Brasília já ultrapassava os 500 mil habitantes. Perguntei onde
estava escrito o número de habitantes previsto para Brasília. Lucio Costa tinha
um humor britânico, sereno e agudo. Ele disse: “Olha, isso é como a
Constituição da Inglaterra, nunca foi escrito, mas todo mundo segue”. Passei a
adotar o número de 600 mil habitantes como referência para Brasília.
Como
vê a versão de que Brasília não tem esquinas. Quais são as esquinas de
Brasília?
O Sebinho é uma esquina, é um lugar de encontro. O Beirute, o Cine
Brasília, o CCBB. E a própria rua, quase nunca vou à rua sem que alguém me
chame. Mas tem de estar no curso da vida. As esquinas reais são feitas de gente.
O
que te irrita ou te exaspera em Brasília?
Sou um apaixonado crítico com a cidade. É a crítica que só um amoroso se
permite. Vamos desmistificar um pouco, Brasília não é só a perfeição de
Niemeyer. Você tem de um lado Vicente Pires e Águas Claras. Uma é aquela coisa
rasteira, uma casa acavalada na outra, com grades para todos os lados. A outra
são os arranha-céus. Brasília virou o centro histórico da cidade. Mas se você
sai daqui tem um choque de feiura. Vi uma foto aérea de Itapõa, é um horror
visto de cima, não tem uma árvore. No século 17, os portugueses faziam casas
maravilhosas em Minas. Lucio Costa perguntava: onde foi parar a saúde plástica
da arquitetura brasileira? Não estou falando da arquitetura erudita; estou me
referindo à arquitetura espontânea do povo. Andei em um beco paralelo à W 3
Norte. Que horror em uma área tombada. Falta uma força disciplinadora.
E o
que te encanta em Brasília?
A cidade como um todo me encanta. Se você anda por Brasília, vê coisas
que só veria em um museu de outra cidade. Você vê os evangelistas de Bruno
Giorgio, entra naCatedral e avista os anjos de Ceschiatti flutuando no espaço.
Vai ao Parque da Cidade e se depara com um painel de Athos Bulcão na fachada de
um banheiro. Às vezes, paro um carro em uma quadra para descobrir coisas que
desconhecia. O dia a dia da cidade reserva surpresas magníficas. A subida
do Eixo Monumental no entardecer é uma experiência de êxtase, parece que Nossa
Senhora vai subir ao céu com uma corte de anjos. O Pontão do Lago Sul à tardinha
é uma superprodução. A natureza caprichou. Não me canso de apreciar as cores do
céu de determinados lugares. Tem tons inimagináveis de azuis e
esverdeados.
O
que o preocupa neste momento?
Os jovens me preocupam muito. Tornaram-se pragmáticos, com uma atitude
do aqui e agora. Querem resultado imediato, muitas vezes em proveito próprio. E
vai acabando com o encantamento da cidade. Lembro de um autor que escreveu:
indignai-vos, mas também comprometei-vos. Temos de reconstruir valores.. Não é
culpa deles. O que veem são pessoas que usam expedientes escusos e são bem
sucedidos. Parece que não há crise no Lago Sul. A crise está no Itapoã, está na
periferia.
Por
onde deveria começar a educação patrimonial?
A educação patrimonial tem de começar pelos governantes, pelos deputados
das Câmara Legislativa para aprender a responsabilidade em relação à cidade. Há
uma grande dose de desinformação, ignorância e sensibilidade. A sensibilidade
precisa ser usada. E, ás vezes, há até má-fé, da parte dos grandes empreiteiros,
que transformam a cidade e o bem público em objeto lucrativo.
O
que é Brasília em sua vida?
Minha vida já foi vivida em sua maior parte e agora quero aproveitar o
saldo nas coisas boas que a cidade oferece. Vim para cá jovem para exercer um
ideal coletivo, aqui me casei, tive filho. Quando recebi o título de cidadão
honorário, isso é desnecessário, sou cidadão dessa cidade, e ela me adotou
também. A universidade foi muito importante. Mesmo sem ter doutorado, me
concederam o título de professor emérito. E também os amigos que fiz em
Brasília. Isso incluem ex-alunos a quem devo muito. Isso é fundamental para
continuar existindo. Pessoas como Luiz Humberto são verdadeiros irmãos.
Brasília não é nada fria, isso é uma bobagem.
Por: Severino Francisco – Foto:
Marcelo Ferreira/CB/D.A.Press – Correio Braziliense
Que testemunho ´preciosos, Coutinho!!!! Valeu!
ResponderExcluirGrande brasiliense, sempre muito digno e incisivo. Defende Brasília do modo mais equilibrado que se sabe. Tem a sincera reverência de quem o conhece.
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