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#História: Herança do Brasil-Império no Planalto Central

Fazenda do Tacho: em madeira, portas e janelas azuis têm as enormes proporções das construções do século 19

Fazendeiros, garimpeiros e escravos ocupavam o território do Distrito Federal e Entorno muito antes de Brasília. Em busca de ouro, alguns fundaram o Arraial de Santa Luzia, a atual Luziânia (GO), que completa 270 anos esta semana. O Correio inicia uma série de reportagens sobre a história da cidade que exerceu importante papel na construção da nova capital

Muito antes dos candangos, dos políticos e dos servidores públicos, a região do atual Distrito Federal era ocupada por fazendeiros, escravos, bandeirantes, garimpeiros. Essa gente fez surgir e crescer o Arraial Santa Luzia. Primeiro, devido ao ouro. Depois,  impulsionado pela agropecuária. Elevado a vila, tornou-se município e ganhou o nome de Luziânia. Mais antiga vizinha de Brasília e a quinta mais populosa do estado, a cidade goiana completa 270 anos na terça-feira. Com 200 mil habitantes e uma economia diversificada, ela não para de crescer. Muito em função da proximidade da capital do país.

Nos séculos 18 e 19, escravos africanos ergueram as casas, as lojas e as igrejas do ainda Arraial Santa Luzia. Eles eram a base de uma sociedade que tinha no topo os ricos donos de imensas fazendas e suas submissas mulheres. As propriedades rurais, tomadas por gado e cana-de-açúcar, alimentavam pequenas cidades e vilas, habitadas por padres, militares, comerciantes, artesãos e funcionários públicos. Percorridas por tropeiros em lombo de burro e carros de boi, trilhas e raras estradas de terra ligavam os núcleos populacionais. 

Luziânia influenciou a cultura, a história e a economia de Goiás e do DF. No Arraial Santa Luzia, os integrantes da Missão Cruls montaram acampamento para o primeiro levantamento científico do quadrilátero onde seria erguida a nova capital brasileira. Mais tarde, fornecendo parte do seu território, comida, mão-de-obra e material para a construção de Brasília, contribuiu para a concretização da maior marca do governo de Juscelino Kubitschek, a cidade moderna desenhada por Lucio Costa. 

Essas e outras histórias são contadas em detalhe pelo Correio, a partir de hoje, por meio de uma série de reportagens. A primeira destaca a resistência de fazendas aos avanços da tecnologia e da expansão urbana do quase tricentenário município. Mesmo com os loteamentos cada vez mais próximos e a tentação dos altos rendimentos de monoculturas, como a da soja, elas mantêm características de 100, 200 anos atrás. Nelas, há gado, pomar e horta. Algumas ainda têm charrete, carro de boi e ruína de senzala. Muros de pedras erguidos por escravos circundam as sedes, com os típicos janelões, os pisos e as estruturas de madeira do estilo colonial. 

Classe e sofisticação
Distante 25km do centro de Luziânia, a Fazenda do Tacho é um dos mais belos exemplares dos áureos tempos do município. Perto da BR-040, rodovia construída no governo JK em seu projeto de interiorização do país com a mudança da capital para o Planalto Central, a propriedade exibe construções do Brasil-Império. 

Com as paredes na cor branca, a edificação onde fica a sede ainda preserva a base de pedra. As portas e janelas azuis, todas em madeira, têm as enormes proporções das construções do século 19. Nos cômodos, móveis e objetos de decoração remetem ao passado. Máquinas de escrever, candeeiros, carabinas, panelas de ferro, tudo trazido pelo dono, Marcos Guimarães, 66 anos, de cidades goianas e mineiras para compor o cenário.

Ele comprou a propriedade, no fim dos anos 1990, com o intuito de montar um hotel-fazenda. “Inaugurei o hotel-fazenda em 2000. Como sou engenheiro e tinha uma empresa de engenharia, construí tudo rapidinho. Os materiais retirei de uma casa perto de Barbacena (MG) e reconstruí em Luziânia”, conta. Os 24 chalés em volta da sede, erguidos para receber gente em busca de sossego, seguem as características coloniais. 

Residindo no Park Way, Guimarães não tem plano de reativar o hotel, mas aluga as casas para visitantes. “Cheguei a ter 25 funcionários fichados, mas era muito trabalho. Agora, tenho quatro, para cuidar do gado e da fazenda. As casas estão disponíveis para alugar, mas não oferecemos mais nenhum serviço, tudo fica por conta do inquilino”, esclarece.
                 Interior da sede da Fazenda do Tacho: móveis em estilo colonial
O vaqueiro João Teixeira acorda cedo para tirar o leite e cuidar da sede da propriedade
Fatinha e o marido criam galinhas, porcos e plantas para o consumo da família

Animais selvagens
Caseiro na fazenda há quatro anos, João Donizeti Teixeira, 60, trabalha na roça há mais de 50, na lida com a terra e com o gado. Pai de três filhos, mora com a caçula em um dos chalés da Fazenda do Tacho. Ele é o responsável por cuidar dos bois e das vacas, mas também ajuda na conservação dos imóveis e objetos da sede. “Acordo cedo e tiro o leite das vacas paridas. Só com os assobios, chamo elas (sic) para dentro do curral”, ressalta.

Dos tempos de hotel-fazenda, o engenheiro manteve as plaquinhas que identificam as plantas e alertam sobre a grande presença de animais selvagens. Entre eles, tatu, veado, tamanduá, porco-espinho, macaco, gambá. Também, alguns mais ameaçadores, como lobo-guará e cobras de espécies como coral, cascavel e jararaca. Mas, como frisam os avisos, habitantes do cerrado, que precisam ser preservados.

Onde o tempo parou
Aos 55 anos, Maria de Fátima Vieira não integra grupo algum de whatsapp, não tem conta no Instagram nem perfil no Facebook. Sequer possui smartphone. Também não vê filme no Netflix. Não tem TV a cabo, tablet ou laptop. Os maiores luxos da sua casa são uma antena parabólica, uma TV de tubo e uma geladeira, onde conserva os queijos que produz do leite das vacas dela, e as carnes das galinhas e dos porcos que cria soltos no quintal.

Longe dos centros urbanos e sem acesso ao universo tecnológico, o tempo anda mais devagar para Maria de Fátima. Ela vive como os pais e os avós na pequena propriedade herdada, a cerca de 20km do bairro mais perto de Luziânia. Fatinha, como é conhecida no lugarejo, mora na  casa simples, com assoalho de madeira, paredes de adobe e telhas de barro, construída pelo pai de Fatinha e um amigo, há 100 anos.

No quintal de casa, um pomar repleto de mangueiras, jabuticabeiras e frutas típicas do cerrado alimentam os moradores e os bichos da propriedade. Além de cuidar dos animais, Fatinha, o marido e um filho plantam verduras e legumes para o consumo próprio. Dinheiro, só entra por meio do leite. Das 10 vacas, três estão prenhas, e outras quatro, recém-paridas, que garantem a produção dos queijos, vendidos a R$ 15 para amigos e vizinhos.

Fatinha e o marido, Divino Dutra, 54, mantêm outros velhos costumes da região, como a carne de porco na lata e o preparo de toda a comida em fogão a lenha. “Quando a gente mata um porco aqui, frita a carne na própria banha do porco e depois guarda numa lata. Nem precisa colocar na geladeira, porque a gordura não deixa estragar”, ensina Fatinha.

MEMÓRIA - Corrida pelo ouro
Os primeiros povoamentos ao redor do atual Distrito Federal surgiram em função da colonização das terras dos índios da etnia Goyá (grafia antiga) e da corrida ao ouro. Mais antigo dos núcleos urbanos da região, Pirenópolis, a 140km de onde seria erguida a nova capital do país, começou a ser ocupado em 1727, quando bandeirantes portugueses, vindos de São Paulo, ali fundaram as Minas de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte.

Os desbravadores sabiam da existência do ouro. Logo após montar acampamento, eles se lançaram à cata do precioso metal no leito do Rio das Almas.Passavam o dia revirando e lavando o cascalho das margens até poder apurar o ouro com bateia, em um dos mais antigos métodos de garimpagem. Oriundos do norte de Portugal e da Galícia, em sua maioria, os portugueses construíram casas e igrejas, formando um arraial. A ainda imponente Igreja Matriz, cartão-postal do município, eles ergueram entre 1728 e 1731.

No mesmo período, bandeirantes rumavam para o que viria a ser Corumbá, vizinha a Pirenópolis. Também atraídos pelo ouro, fixaram acampamento na margem esquerda do Rio Corumbá. Em 8 de setembro de 1730, fundaram o Arraial de Nossa Senhora da Penha do Corumbá. Ergueram ranchos de pau a pique, com cobertura de palhas de buriti. Um deles virou capela. Os outros serviam de moradia aos bandeirantes e a seus escravos.

Uma década depois, à procura de novas minas de ouro, o bandeirante Antônio Bueno de Azevedo partiu de Paracatu (MG),com amigos e escravos, em direção a Goiás, mas sem destino definido. Em 13 de dezembro de 1746, enquanto descansava às margens de um córrego, ele viu pepitas de ouro. No dia seguinte, ergueu um cruzeiro e dedicou as minas e o povoado à Santa Luzia (futura Luziânia). A notícia logo se espalhou. Em menos de um ano, o arraial tinha mais de 10 mil habitantes. Uma enormidade para a época.

Como em Pirenópolis, a primeira grande edificação de Luziânia foi a Matriz, construída de 1765 a 1767. Mas só a população branca podia frequentá-la. Com isso, os negros começaram a erguer, em 2 de junho de 1769, a Igreja do Rosário. Os dois templos continuam de pé, mas apenas o dos negros mantém a estrutura original. Ele fica no ponto mais alto da Rua do Rosário, onde se concentram os prédios históricos da cidade.




Fonte: Renato Alves » Fernando Caixeta - Especial para o Correio Braziliense – Fotos: Ed Alves/CB/D.A.Press

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