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Goiás ganhará um caminho inspirado no de Santiago de Compostela

Os 282km já podem ser percorridos de bicicleta, a pé ou a cavalo (carros não atravessam inúmeros trechos), com auxílio de GPS ou mapa - Previsto para ser inaugurado em março, o Caminho de Cora Coralina foi traçado com base em relatos de viagens realizadas desde o século 18

*Por  Jéssica Eufrásio

Composta por morros verdes e um céu sem as limitações impostas pelos edifícios da cidade, a paisagem é vistosa ao redor. Inspirado em um dos principais nomes da literatura goiana, o Caminho de Cora Coralina começou a ser demarcado em 2015. Tal qual a Estrada Real de Minas Gerais e o Caminho de Santiago, na Espanha, o estado de Goiás compreendia uma trilha histórica destinada aos viajantes. O trajeto passa por modificações. O intuito é transformar um percurso usado por bandeirantes, há centenas de anos, em uma estrada visitada por aventureiros interessados em conhecer as belezas naturais e a cultura do estado que abraça o Distrito Federal.

A inauguração oficial está prevista para março, mas os seus 282km podem ser percorridos de bicicleta, a pé ou a cavalo (carros não conseguem atravessar inúmeros trechos), com auxílio de GPS ou mapa. Os viajantes desfrutam não só de espaços em meio à vegetação do cerrado, mas também das belezas de residências dos séculos 18 e 19, das ruínas de antigas lavras de ouro e da presença de fazendas e cidades históricas.

O caminho começa em Corumbá de Goiás, município com pouco mais de 11 mil habitantes e a 140km de Brasília, e termina na Cidade de Goiás, antiga capital do estado, mais conhecida como Goiás Velho, e local de nascimento da poetisa cujo nome batiza a trilha. Passa, ainda, por outras cidades históricas, como Pirenópolis, Jaraguá, Itaguari e Itaberaí. Em todos os oito municípios por onde o caminho passa, há locais para hospedagem, especialmente nas cidades maiores.

Garimpo - Em Corumbá, a trilha começa próxima a um trecho composto por casebres, fazendas e sítios. Há duas opções de início: uma perto do Terminal Rodoviário, na qual se atravessa um pequeno trecho de mata (o percurso pode ser irregular para ciclistas ou pessoas montadas em cavalos); a outra começa perto da rodovia GO-225, na subida da Avenida São João.
Passando por casebres, fazendas e sítios, percurso começa em Corumbá de Goiás, cidade fundada em 1730, com um casario colonial bem preservado

Mas, antes, vale a pena conhecer Corumbá. Fundada em 1730, a cidade começou a crescer em 1734, a partir da inauguração da capela de Nossa Senhora da Penha de França, hoje igreja-matriz. A população se desenvolveu entre a paróquia e o Rio Corumbá, onde pedras preciosas eram garimpadas pelos bandeirantes. No início, a economia da cidade girava em torno da mineração. Com o fim da atividade, a renda passou a se amparar na agropecuária e, hoje, é sustentada principalmente pelo turismo.

Ramir Curado, 57 anos, pesquisador da história corumbaense, escritor e comerciante da região, conta que chegou a mapear 127 garimpos de mineração até o século 20. Apesar disso, segundo ele, o município também teve importante papel na movimentação do comércio de Goiás. “Todo o norte goiano vinha fazer compras aqui. A partir do fim do século 19, a produção de tabaco, açúcar e café deu um enorme destaque a Corumbá. Mas, hoje, é o turismo que está em desenvolvimento aqui”, ressalta.
O historiador Ramir Curado mapeou 127 garimpos de mineração

Além das quedas d’água e corredeiras pelas quais o município é conhecido, chama a atenção o centro histórico, composto por casarões construídos no período colonial, pela igreja Nossa Senhora da Penha de França e pelo Cine Teatro Esmeralda. Algumas das atrações que passam pelo centro histórico são o carnaval da cidade, que conta com marchinhas tradicionais, e as apresentações artísticas do Coral de Corumbá, da Orquestra de Violeiros e da Corporação Musical 13 de Maio, mais antiga de Goiás. As aulas de história ficam por conta da apresentação das tradicionais cavalhadas (encenações de batalhas entre cristãos e mouros, introduzidas no Brasil pelos jesuítas).

Pedalando - As casas próximas ao Caminho de Cora Coralina são habitadas, em geral, por trabalhadores da região. Segundo eles, é comum ver fazendeiros, vaqueiros e ciclistas locais e forasteiros usando a estrada. Nascido e criado em Corumbá, Geraldo da Silva, 67, se lembra do tempo em que fazia o percurso até Pirenópolis. “Tenho alguns amigos que moram em fazendas perto da estrada. Eu costumava visitá-los a pé ou de bicicleta. Mas, quando a saúde permitia, cheguei a ir a Pirenópolis por ela”, conta.
Geraldo: "Tenho alguns amigos que moram em fazendas. Costumava visitá-los a pé ou de bicicleta"

Integrante de um grupo de ciclistas, o morador de Caldas Novas (GO) Reginaldo Moronte, 41, conheceu o caminho em 2015, a convite de um amigo. Foram três dias de viagem, entre 10 e 12 de outubro, ao lado de nove companheiros de pedalada. Com base nessa experiência, ele destaca a importância de praticar ciclismo para enfrentar o trajeto. “O melhor jeito de fazê-lo é caminhando, de bicicleta ou montado em algum animal. Mas é necessário preparo físico. Não pode ser qualquer cicloturista. É necessário, ao menos, um ano de prática. Podem acontecer acidentes, então o ideal são, no máximo, 10 pessoas por grupo”, recomenda.

O grupo parou em restaurantes, hotéis e pousadas nas cidades visitadas para comer ou passar a noite. Ainda assim, segundo Reginaldo, três dias não foram suficientes para conhecer todos os atrativos. “O mais difícil foi o trecho de um morro. Mas, fora isso, passamos por locais maravilhosos. Deixamos alguns pontos de fora, como a Fazenda Babilônia (em Pirenópolis) e cachoeiras, porque fizemos o caminho em três dias. Em cinco dias, porém, teríamos conhecido tudo”, observa.

Médico, Alvaro Luis de Paula, 56, fez o Caminho de Cora Coralina com Reginaldo e voltou em 2017. Para o morador de Goiânia, a maior dificuldade decorreu da falta de sinalização. Contudo, o grupo com o qual percorreu a trilha recorreu a mapas na internet, à Goiás Turismo e aos moradores da região para conseguir as informações necessárias. “Para Goiás, é um projeto interessantíssimo. O percurso não é tão puxado, mas também não é para qualquer um. Precisei traçar o caminho com ajuda de mapas na internet”, detalha.

Ampliação - Cientista ambiental, morador de Goiânia e voluntário do projeto, Alessandro Abreu conta que, na última quinta-feira, mais 17 km da estrada, entre Caxambu e Radiolândia, foram sinalizados. “É um processo que não acaba, porque temos de revisá-la (a sinalização) a cada três meses. Antes do lançamento (oficial), vamos providenciar o cadastro de locais de hospedagem, suporte para alimentação, locais para banho, mas isso é desenvolvido com a própria comunidade”, explica.

Pinturas em árvores e postes demarcam as trilhas pelo interior


Os participantes do projeto também pensam em criar um sistema de passaporte semelhante ao usado em outras trilhas famosas. Segundo Alessandro, a proposta permitirá que o turista colecione carimbos em pontos específicos ao longo do trajeto. Até lá, o governo goiano segue sinalizando a estrada e tentando negociar a cessão de passagem por estradas particulares.

Memória - Primeiro livro aos 75 anos
Cora Coralina, nome adotado por Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, nasceu na Cidade de Goiás, em 20 de agosto de 1889. A poetisa e contista ficou famosa por retratar nos escritos que produzia a simplicidade do cotidiano dela. Publicou o primeiro livro só aos 75 anos.

Desde então, teve nove obras editadas, sendo quatro delas póstumas, e chegou a receber dois prêmios: o literário Juca Pato e a Ordem do Mérito Cultural. A poetisa morreu em Goiânia, em 10 de abril de 1985, aos 95 anos, vítima de uma pneumonia.

Em 2017, estreou o filme Cora Coralina – Todas as Vidas, do diretor Renato Barbieri. O nome homenageia um dos poemas da escritora (leia ao lado). O longa-metragem mescla a ficção e a realidade para contar a história de Cora. “Ela tinha uma visão muito à frente do tempo e a capacidade de se expressar com muita verdade, clareza e força em uma sociedade machista, patriarcal e escravagista. O principal mérito dela era a coragem”, ressalta Renato.

Para o cineasta, o Caminho de Cora Coralina, de certo modo, também se associa à personalidade da escritora. “É um caminho que passa por lugares de muita beleza. Ele tem a força da história e da natureza, dois aspectos bastante relacionados à vida dela, que sempre defendeu a natureza, as mulheres e as pessoas pobres”, salienta.
Roteiro baseado em diários de viagem - A elaboração do roteiro do Caminho de Cora Coralina ficou a cargo do pesquisador Bismarque Villa Real. Especialista em estradas e caminhos antigos e em estudos sobre o Planalto Central, ele fez um levantamento recorrendo a diários de viagem dos séculos 18 a 20. “Tracei o caminho com base nas observações de seis viajantes. O roteiro, a princípio, ficou com cerca de 260 km. Não optamos pela menor distância, mas pela maior quantidade de locais importantes que precisavam estar no trajeto, como a Fazendo Babilônia, por exemplo”, explica.

O projeto proposto foi aceito, mas ficou parado por um tempo. O primeiro mapa passou por modificações e a extensão do trajeto aumentou para incluir outras áreas naturais e sítios históricos. É possível que o percurso alcance até 300 km. Outro plano envolve colocar, ao longo do trajeto, nas áreas de descanso e pontos de apoio, textos de Cora Coralina e de escritores de cada um dos municípios visitados.

Chapada dos Veadeiros
De acordo com João Lino, gerente de projetos, produtos e pesquisas turísticas da Goiás Turismo, agência de turismo do estado, a proposta começou a ser avaliada em 2013, quando empresas de consultoria foram contratadas. João ficou responsável pela pesquisa de campo e pelo conceito do caminho. “A Goiás Turismo tem trabalhado desde 2014 com alguns roteiros de unidades de conservação, mas, desde o ano passado, temos focado em percursos de longo curso. Por isso, o Caminho de Cora Coralina é o nosso projeto experimental”, comenta.

A ideia é associá-lo a mais áreas que envolvam unidades de conservação e ligá-lo à Chapada dos Veadeiros. “Hoje, temos de 50 a 60 km do caminho sinalizado. Temos usado pinturas nas árvores e postes, porque, assim, não há risco de danos a elas. Estamos contando com apoio da comunidade e de voluntários para auxiliar nesse processo. Além de gerar menos custos e uma sensação de pertencimento, esse tipo de ação trabalha a educação ambiental, cultural e turística dos moradores da área”, destaca João Lino.

O lançamento oficial do Caminho de Cora Coralina está previsto para 23 de março. Até lá, o projeto inclui a divulgação do mapa oficial de todo o percurso, de uma planilha para os usuários caminhantes e cicloturistas e de um site do projeto. “Estamos tentando lançar um aplicativo que reúna todas essas informações. A intenção é tematizar o roteiro em cima da poesia, de paisagem, de gastronomia e de cultura. A poesia será um diferencial”, assinala João Lino.

Outros caminhos - Santiago 
As dezenas de possibilidade de trajetos que compõem os Caminhos de Santiago levam à cidade de Santiago da Compostela. A catedral de mesmo nome do município é visitada por peregrinos que, desde o século nono, iam venerar as relíquias do apóstolo Santiago Maior. Apesar do caráter religioso do caminho, grande parte das pessoas não o faz por motivos religiosos. O percurso, que parte de diferentes locais da Europa, também costuma ser percorrido a pé, a cavalo ou de bicicleta.

Estrada Real
Dividida entre quatro caminhos, a Estrada Real é a maior rota turística do Brasil. O percurso se estabeleceu no século 17, quando a Coroa Portuguesa oficializou as rotas para transporte de ouro e diamantes do interior do país até os portos fluminenses. Os mais de 1.630 km de extensão passam pelos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo e dão destaque à história e às belezas das regiões percorridas.


(*) Jéssica Eufrásio - *Estagiária sob supervisão de Renato Alves – Fotos: Minervino Junior/CB/D.A.Press -  Museu Casa de Cora Coralina - Correio Braziliense

1 Comentários

  1. Parabéns pela criação desse roteiro. Com certeza eu vou querer fazê-lo. Um grande abraço!

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