Infância no pilotis
*Por
Mariana Niederauer
O interfone toca no domingo à tarde e começa a convocação. Uma por uma, as crianças do prédio são chamadas para a brincadeira embaixo do pilotis. Todos os que se consideram brasilienses “de raiz” já devem ter passado por essa situação. A decisão mais complicada é sobre ir ao parquinho da quadra ou ficar por ali mesmo e inventar uma brincadeira que entretenha a todos até o Sol se pôr.
Não há limites para a imaginação, assim como não existem barreiras no térreo de vão livre das edificações. Na calçada, em vez de pintar o sol, como na canção de Renato Russo, o giz desenha a amarelinha. Se os pulos tiram o fôlego, o chão pode virar céu onde voam as gaivotas da música de Toquinho e Vinícius.
A quadra também vira ponto de encontro da juventude que não se preocupa com a falta de esquinas. Compõe, conversa, briga e paquera nas 200 e cruza o eixo para encontrar diversão nos botecos das 500, à beira da W3.
Combustível para uma geração de artistas que revolucionou o rock nacional nos anos 1980. O Aborto Elétrico gerou a Legião Urbana, e os Paralamas do Sucesso colocaram Vital a andar com sua moto pelas ruas da Capital Inicial, que até regravou a rebeldia da Mulher de Fases dos Raimundos. Sem falar na Plebe Rude, com o “refrão-profecia” de Brasília, do álbum O concreto já rachou.
Crescer em Brasília significa se acostumar a esse labirinto de operações matemáticas embaralhadas com coordenadas geográficas. Par ou ímpar, norte e sul. Arrisca outro idioma: o west vira W. Aula de costura no trânsito: a agulha que cruza a tesourinha. Brincadeira de infância: atravessar o Eixinho para andar de bicicleta no Eixão. Decepção para a criança que está no carro: não poderá passar por aquela via de seis faixas em que é possível observar toda essa movimentação.
Fim da digressão. Voltamos à tarde de domingo. As águas de março também fecham o verão por aqui. A chuva cai no dia ensolarado e espanta a brincadeira do pilotis. A sala de casa é pequena para a farra e o jeito é se contentar em assistir a um filme com pipoca e guaraná.
(*) Mariana Niederauer - Correio Braziliense –
Foto: Luis Nova/Esp. CB/D.A
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