Pra gostar de Brasília é preciso tempo, paciência e espírito aberto -Sempre que me perguntam de onde vem
esse amor por Brasília, conto a mesma história. Não há outra pra contar. Nesse
novo começo, conto outra vez, pra começar do começo novamente.
Crônicas urbanas, crônicas de amor e do viver -(Conceição Freitas)
Brasília nasceu em mim num álbum de fotografias de papel. Na sala da
palafita, a menina que fui olhava as imagens como quem vê o mundo pela primeira
vez. Cada página, um novo nascer. Eram fotos de um estranho lugar de chão
vermelho, homens de terno, uma missa ao ar livre, um estacionamento de aviões,
um enorme galpão e algumas barracas montadas num descampado que só terminava
onde começava o céu. Eu era uma menina- astronauta orbitando a Lua/Brasília.
Belém ainda não havia nascido em mim quando as fotos de Brasília
abriram meus olhos para o lado de fora do mundo. Só percebi o tamanho e a
imponência do lugar onde morava quando fui estudar no lado dos ricos – era como
se eu morasse na Expansão do Setor O e fosse estudar nas escolas caras do Plano
Piloto.
De ponta a ponta da minha rua passava um esgoto a céu aberto do tamanho
de um córrego do cerrado. Pra sair de casa, tinha de vencer uma ponte de tábuas
velhas e esburacadas. Cada saída era quase um desespero. Eu evitava olhar pro
fundo da vala pra não ver tudo de sujo que eu não queria descobrir. A sarjeta
imunda era o paraíso dos siris e o meu tormento. Bichinhos velozes e de
muitas pernas, correndo de lado com os olhões esbugalhados e sem desgrudar de
mim os olhos imundos.
Depois que eu atravessava o pesadelo, a cidade se abria. Asfalto, ônibus
e, mais um pouco, a Belém do casario colonial, das sombras das mangueiras, dos
palácios, das igrejas e das praças tão grandes e belas quanto as águas que
contornam a cidade. Eu havia encontrado um modo de dar conta do meu viver e o
nome dele era Belém.
Muito tempo depois, esse modo ganhou mais um sinônimo, Brasília. Elas
são tão diferentes quanto uma lobeira e uma seringueira, uma flor do cerrado e
uma vitória-régia, o Lago Paranoá e a Baía de Guajará, a Feira do Guará e o
Ver-o-Peso. São, porém, igualmente monumentais, corporificam conquistas da
civilização brasileira e são antagonicamente belas. Belém só não é mais bela
que o Rio; Brasília é bonita como uma flor do cerrado – gostar dela pede tempo,
paciência e espírito aberto.
Gostar de Belém é fácil. Não tem quem não goste. É amazônica,
surpreendente, é selvagem e é urbana, é ingênua, soberana, cheirosa, saborosa,
lúbrica.
De Brasília, não é fácil. Mais difícil ainda para quem procura uma
cidade e encontra a Esplanada, os três poderes, e só. Brasília é um deserto de
cidade – pra quem só anda de carro, só percorre o Plano Piloto e
evita a Rodô e o Conic.
Tudo parece solidão em Brasília. Até os pilotis das superquadras são
solidões debaixo do bloco. É preciso descer do carro e da ideia estabelecida de
cidade para encontrar Brasília.
Brasília é a cidade de quem não tem cidade, de quem precisa de outra
cidade. É um desejo de cidade, uma vontade de reinventar o modo de viver em
cidade. Uma expressão de fé no Brasil, nos brasileiros e na civilização.
É uma arquitetura cercada de vazios por todos os lados. Um Brasil
interrompido; é hoje a sede administrativa de uma Nação espatifada, como a
estrela de Clarice Lispector.
Brasília nasceu na democracia, mas foi a cidade perfeita para acolher a
ditadura instaurada em 1964. Abrigou, com gosto, a democracia. E, agora, se vê
ocupada por brasileiros que parecem não ter a menor noção do que ela é e
representa.
Na sucessão vertiginosa do tempo, pouco importa. Brasília é maior que
qualquer um de seus provisórios habitantes. Ela é a expressão concreta de que
tudo um dia pode ser melhor, mesmo que demore. E Brasília demorou dois séculos
e meio para, de cidade sonhada, ser uma cidade real, a mais brasileira de
todas. Nenhuma outra tem tanta mistura de Brasis.
Coluna Conceição Freitas - Foto: Daniel Ferreira - Metrópoles