Pilotis dos blocos das superquadras, a utopia que
não fracassou. Os vãos livres são a prova cotidiana (e brasiliense) de que é
possível vida coletiva de qualidade sem a prisão dos condomínios fechados.
(Por Conceição Freitas)
Quando os brasileiros deram asas à arquitetura moderna pendurando os edifícios em pilotis,
abrindo caminho para o vento e as pessoas, liberando o chão para a passagem do
desejo, dos encontros, das possibilidades, eles ofereceram ao mundo o jeito
mestiço e tropical de ser moderno.
Foi assim no Masp, da Linda Bo Bardi, e no Palácio
Gustavo Capanema, de Lucio Costa e equipe, os dois exemplos mais potentes de
que, com ousadia e liberdade, até o concreto armado pode voar. Na Flip que terminou no domingo (14/07), uma das mesas mais
festejadas tratou das relações entre literatura, música, urbanismo e
arquitetura. Os arquitetos Guilherme Wisnik e Nuno Grande e a cantora Adriana
Calcanhoto invocaram Caetano Veloso, Gilberto Gil, Juscelino e Brasília.
O ponto de partida da mesa foi a exposição
“Infinito vão: 90 anos de arquitetura brasileira”, aberta em Portugal desde o
ano passado. O vão livre é o traço mais marcante do modo brasileiro de fazer
arquitetura moderna. Como na música de Gilberto Gil: “O verdadeiro amor é
vão/Estende-se infinito/Imenso monolito/Nossa arquitetura”.
Como o amor, os vãos do Plano Piloto estendem-se
infinitos nas superquadras. Nenhuma outra cidade brasileira é tão livre para
amar em vão como Brasília, como os blocos das Asas Norte e Sul. A despeito do desejo incontido de se querer fechar os vãos livres
dos pilotis, eles seguem libertos – como o verdadeiro amor.
Dia desses, uma jovem estudante de design, vinda de
São Paulo, olhou pela primeira vez para os blocos das superquadras e
estranhou: Ué, eles não têm grades!
A utopia não foi totalmente vã: os pilotis
continuam livres e são a prova cotidiana de que é possível a vida coletiva fora
dos condomínios fechados
“Ao contrário da arquitetura portuguesa, que se
define como uma arquitetura chã, um arquitetura atávica, presa ao chão, a
arquitetura brasileira — disse Guilherme Wisnik — ganhou essa coisa utópica,
esse desejo de salto, de sobrevoo”.
Se voa, nós brasilienses voamos juntos nos blocos
de três e seis andares das superquadras. E nem é por isso que cada um dos lados
das fileiras de blocos residenciais do Plano Piloto se chama asa. A escolha,
diz a história, foi apenas um modo apressado de dar nome à sequência de
superquadras à direita e à esquerda do Eixo Monumental.
O verdadeiro amor é vão, os edifícios têm vãos,
tudo o mais nesta cidade é um vão infinito entre o céu e a terra. Os arquitetos
da natureza e da cidade, os deuses e os homens, prepararam o terreno para a
utopia. Uma delas fracassou, mas a outra ninguém nos tira: os vãos. De onde se
pode voar sem sair do lugar.
Por Conceição Freitas – Fotos: Felipe Menezes –
Metrópoles