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ANIVERSÁRIO DE BRASÍLIA: BRASILIENSES DE CORAÇÃO

Eles vieram para ficar pouco, mas encantaram-se com a cidade e agora não pensam em deixá-la

Por: Clara Becker - Revista veja Brasília

No seu primeiro ano de vida, Brasília contabilizava 140 164 habitantes. Quase todos, mais precisamente 93,6% deles, segundo o censo oficial do DF, vinham de outros lugares do país. A maior parte era composta de nordestinos em busca de emprego na área da construção civil. Mais de cinco décadas depois, com uma população de 2,5 milhões de pessoas, o Distrito Federal tornou-se vinte vezes maior e os postos de trabalho em construtoras estão longe de ser o principal atrativo para quem chega aqui. A capital, que completa 54 anos nesta segunda (21), ganhou corpo, volume e filhos. Em 2010, o número de brasilienses nascidos na cidade ultrapassou, pela primeira vez, o de imigrantes, representando 53,6% dos moradores. A pesquisa, contudo, não leva em consideração aqueles natos nos mais diversos locais, mas que se consideram brasilienses de coração. VEJA BRASÍLIA falou com sete deles, sempre em seus lugares preferidos da cidade. Representantes de diversos setores da sociedade, todos dividem uma história em comum: achavam que a passagem pela capital seria temporária, apenas uma fase da vida. Seduzidos pelos encantos do Planalto Central, eles ficaram e não pensam em regressar para a terra de origem.

As histórias de como eles chegaram a Brasília são variadas. Entre os pioneiros dessa turma, o diretor uruguaio Hugo Rodas pisou aqui na década de 70 com uma mochila nas costas. Deveria apenas ministrar uma oficina de duas semanas. Resolveu fincar raízes. Criado no Rio de Janeiro, o ex-embaixador Francisco Alvim nasceu em Minas. Durante a carreira, serviu em Paris, Barcelona, Roterdã e San José, na Costa Rica. O Itamaraty o repatriou finalmente para sua sede. Hoje, ele não trocaria a capital por nenhuma das outras cidades. Micaela Moreira, de 37 anos, veio trabalhar no Ministério da Cultura. O governo mudou, o cargo acabou, mas ela ficou(veja mais detalhes sobre esses e outros personagens abaixo).

Se os motivos que trouxeram essas pessoas foram os mais diversos, os que as mantiveram por aqui parecem os mesmos. A presença da natureza, o céu no horizonte, o lago, os pássaros e os traços de Lucio Costa constam no longo rol de elogios dos que abraçaram a cidade como se fosse sua. Sem distanciamento de outras relações amorosas, as queixas também surgem, desafiadoras. Mas nem o trânsito, a falta de transporte público, o clima de insegurança e os escândalos políticos derrubam a paixão por uma cinquentona de charme afiado. Parabéns, Brasília.



Sensação de pertencimento 
Micaela Moreira, na cachoeira do Córrego do Urubu: o luxo de um mergulho antes do trabalho (Foto: Michael Melo)

Nascida na Cidade do México, a gestora cultural Micaela Moreira considera-se filha do exílio. Seu pai, o ex-deputado federal maranhense José Guimarães Neiva Moreira, um dos líderes da Frente Parlamentar Nacionalista, foi preso e obrigado a deixar o Brasil com o golpe de 1964. Retornou quinze anos depois ao país, onde escolheu o Rio de Janeiro como morada da família. Micaela tinha uma sensação de não pertencimento em todos os lugares por onde passava, até que se encontrou em Brasília. No ano de 2009, sem conhecer quase ninguém, a jovem mudou-se para a capital, com a proposta de trabalhar no Ministério da Cultura, na gestão de Juca Ferreira. “Aqui os espaços enormes me permitiram fazer um mergulho interno, e eu me senti inteiramente eu”, conta. O cargo era comissionado e, no ano passado, Micaela deixou o Minc. Mas não Brasília. Com um filho pequeno, pesaram a qualidade de vida e a relação com a natureza. Ela almoça em casa todos os dias e, antes de ir trabalhar ou no fim de um dia cansativo, ainda se dá ao luxo de mergulhar na cachoeira do Córrego do Urubu, a cinco minutos da chácara onde mora. Hoje, ela e o marido, o DJ Rodrigo Barata, estão à frente da empresa Pylha e agitam a cena da cultura local. “Brasília é uma cidade-utopia, deveria se assumir como tal”, diz. 
Meu presente para Brasília: transformar a quadra
205 Norte em um hub cultural 





Beleza dentro e fora do Plano Piloto 
Íris Borges, no Jardim Botânico: a arquitetura é bonita, mas a natureza ganha (Foto: Michael Melo)

Não ouse falar mal ou desdenhar de Brasília perto de Íris Borges. Ela fica danada e defende a cidade com unhas e dentes. “Detesto o tom de deboche de quem acha que aqui só tem corrupção”, diz. Numa época em que meninas não podiam viajar sozinhas para visitar os namorados, Íris veio para Brasília acompanhando a irmã, que conhecera um jovem morador da capital. A mãe ordenou que fosse junto e não deixasse os dois soltos um minuto sequer. Naquela semana, contudo, havia um concurso para professora na cidade. Normalista, Íris resolveu arriscar, passou e está aqui desde 1970. Para a moça nascida na pequena Coromandel, interior de Minas Gerais, a capital representava todas as possibilidades de movimentação. “Eu assisti ao avanço do progresso no interior do país. Antes levávamos doze horas para chegar a Brasília; agora são quatro. O país está mais ligado”, conta. Ela trabalhou primeiro como professora no Gama, depois no Ministério da Educação, na gestão de Jarbas Passarinho. Casou-se, montou uma livraria e papelaria. Recebeu convites para deixar a capital, mas não quis. Hoje, a livreira é uma das maiores divulgadoras de escritores brasilienses. Além de ser curadora dos grandes eventos literários da cidade, ela continua a dar oficinas em escolas fora da área central, incentivando a leitura. “De todos os ângulos, vejo coisas bonitas, não só no Plano Piloto. Brazlândia é uma gracinha”, afirma. Para ela, a arquitetura da capital é bela, mas a natureza prevalece. “Brasília tem a maior área verde por habitante do país. Trata-se de uma conexão que o ser humano não pode perder.” 
Meu presente para Brasília: mudar sua
imagem de cidade corrupta 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Terra de oportunidades 
Ryozo Komiya, no New Koto: acolhido, mesmo sem falar a língua (Foto: Michael Melo)

Para o chef japonês Ryozo Komiya, Brasília foi uma terra próspera, de muitas oportunidades. “Por ser capital, cheguei a servir muitos chefes de Estado, inclusive o imperador do meu país nas duas ocasiões em que ele veio para cá”, diz. Segundo ele, o trabalho, não uma livre escolha, o trouxe para o Distrito Federal, em 1976. Dois anos depois, o trabalho e uma decisão pessoal o mantiveram aqui. Integrante de uma família de confeiteiros japoneses, Komiya precisou dar expediente como bancário para pagar um curso de gastronomia. Destacou-se na turma e, com bolsa do governo francês, mudou-se para a terra dos croissants, onde se tornou especialista na culinária local. Lidou com panelas no país de Paul Bocuse até ser contratado como cozinheiro de um embaixador japonês. Trabalhava na principal residência diplomática nipônica em Nova Délhi quando soube que sua próxima mudança tinha como destino a capital brasileira. Komiya imaginava que essa seria apenas mais uma das muitas embaixadas por onde passaria. Chegou sem falar uma palavra de português, mas sentiu-se acolhido na província cosmopolita que era Brasília. “Nos outros países, eu sofria preconceito por ser amarelo. Aqui já existia a colônia japonesa de Vargem Bonita, e as pessoas respeitavam nosso povo”, conta. Em 1978, conheceu uma brasileira, casou-se e teve dois filhos. O chef cogitou voltar para Tóquio com a família, mas lá não teria recursos para se aventurar em um negócio próprio, e a concorrência seria grande. “Brasília era diferente. Não tinha longa história e sobrava espaço”, diz. Abriu, então, o seu primeiro restaurante, especializado em culinária francesa, na 405 Sul. Alguns anos depois foi para o Kosui, na Academia de Tênis, até inaugurar o New Koto. Sua história se confunde com a da gastronomia japonesa na cidade. “Quando comecei, poucos conheciam. Hoje, até as crianças comem.” Nas poucas horas em que deixa o restaurante, seu lugar preferido, aproveita a Brasília esportiva. Gosta de jogar beisebol, tênis e golfe. 
Meu presente para Brasília: um jardim
de sakuras (cerejeira japonesa) para enfeitar a cidade 










Uma lenta paixão 
Asta-Rose, no Teatro Nacional: chegou a ser diretora artística do lugar onde montou dezoito óperas (Foto: Roberto Castro)

Não foi amor à primeira vista. Curiosos para conhecer a nova capital, a bailarina Asta-Rose Jordan Alcaide e o marido, o tenor português Tomás Alcaide, visitaram Brasília em 1962. O casal não viu grande coisa. Apenas uma cidade ainda por fazer. Naquela época seria impossível imaginar que, viúva, Asta-Rose viria morar na capital dez anos mais tarde. Ela era funcionária da Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, que precisava de alguém que tivesse fluência completa em inglês e português para trabalhar em Brasília. Asta-Rose aceitou o convite e assumiu a área cultural da representação americana. Sabia que tinha capacidade de se adaptar às intempéries da vida. Nascida em Joinville em 1923, ela fazia parte do corpo de baile do Teatro Municipal de São Paulo quando conheceu o renomado cantor lírico Tomás Alcaide em turnê pelo Brasil. A paixão foi avassaladora, e em menos de um ano estavam casados. Moravam em Buenos Aires quando ele perdeu o pai e fez questão de voltar para a Europa em meio à II Guerra Mundial. Devido ao prestígio artístico, Alcaide e Asta-Rose conseguiram embarcar num navio, em Santos, apenas para mulheres. Eles passaram por períodos de escassez de comida e eletricidade. No pós-guerra, rodaram a Europa em teatros destruídos, escombros que aos poucos foram sendo reformados. Ainda assim, Asta-Rose estava acostumada com um cenário cultural mais efervescente do que o de Brasília no início da década de 70. Com suas bolachas trazidas da Europa, introduziu a ópera entre um público leigo. Além disso, produziu o cenário, figurino e coreografia do primeiro espetáculo do tipo na capital. Em 1978, fundou a Associação Ópera-Brasília, que montou dezoito produções. “Só posso agradecer à cidade por ter me deixado fazer a diferença”, diz sua cidadã honorária. 
Meu presente para Brasília: um teatro
profissional, do jeito que ela merece 








Caminhando pelos eixos, ele encontrou o dele 
Hugo Rodas no viaduto entre a Torre de TV e a rodoviária: sente-se um príncipe ao olhar a cidade ali do alto (Foto: Michael Melo)

Em 1977, Clyde Morgan, professor de dança na Universidade Federal da Bahia, foi convidado para ministrar um curso de duas semanas na Academia Lúcia Toller, em Brasília. Não pôde ir e mandou o colega Hugo Rodas no lugar. Assim, por acaso, o uruguaio Hugo Renato Giusto Rodas desembarcou na capital, com apenas uma mochila nas costas. Ao cabo dos quinze dias de aula, já sabia que nunca mais deixaria o lugar. Caminhando pelos eixos de Brasília encontrara o seu. Segundo ele, em nenhum outro lugar você é tão obrigado a pensar em si mesmo, a sentir a solidão. “Aqui você vê o horizonte, não o vizinho”, diz Rodas, para quem Brasília tem o máximo da beleza entre o verde e o cimento. Ao mesmo tempo, ficou fascinado também pela igualdade. Todos frequentavam os mesmos lugares. “O Beirute e o Conjunto Nacional eram espaços verdadeiramente democráticos”, lembra-se. Coincidência ou não, sua cidade natal, a pequena Juan Lacaze, no interior do Uruguai, tem Dom Bosco como patrono. Rodas saiu de lá cedo, foi estudar medicina em Montevidéu. Na capital do seu país, deixou-se seduzir pelo mundo das artes e abandonou o jaleco. Um ano após o golpe militar uruguaio, desencantou-se e veio morar no Brasil. Em 2014, ele completa 37 anos na capital, metade da sua vida. Diretor, coreógrafo e ator, Rodas foi uma das locomotivas da cena teatral brasiliense. Cidadão honorário e professor emérito da UnB, ele se diz candango. “É uma loucura, não consigo nem pensar fora de Brasília.” 
Meu presente para Brasília: meu novo trabalho sobre o
livro de Luiz Bernardo Pericás, previsto para novembro 








Privilégio profissional 
Ayres Britto, no Ernesto Café: o ministro-poeta sente-se inspirado pela cidade (Foto: Michael Melo)

A primeira vez que ouviu falar sobre a nova capital, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Ayres Britto morava em Propriá, no interior de Sergipe. Ele se dividia entre o trabalho no Banco do Brasil e o curso de direito, em Aracaju. “Achei uma ideia inspirada essa de promover a integração do país”, conta. À medida que o tempo passava, foi ficando mais fascinado pela utopia juscelinista e começou a torcer para que a construção da cidade ficasse pronta a tempo. Que ele moraria nela como chefe da mais importante corte do país não fazia parte das suas cogitações. Chegou a visitar a cidade algumas vezes durante os dois mandatos de conselheiro na Ordem dos Advogados do Brasil. Mas foi apenas em 2003, quando nomeado ministro pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que veio de mala e cuia, trazendo a filha mais velha. Encantou-se com os espaços desmesurados, sem obstruções. “O espírito vai atrás dessa visão alongada”, diz. Com o tempo, o agrado foi aumentando e convenceu três outros filhos a vir. Um dos seus netos já nasceu brasiliense. Segundo conta, seu coração se expandiu e abriga Brasília como uma nova terra. “É orgânico, sinto perfeita identidade com a população”, explica. Afeito a caminhadas, o ex-ministro corre 4 e anda 2 quilômetros por dia. É nessas horas que vem a inspiração para os versos do ministro-poeta. Quatro dos seus livros foram escritos aqui. Gosta em especial de observar a passarinhada. Numa noite clara de lua cheia lhe veio um poema: “A noite entrou na casa do João de Barro e dormiu com ele / Saiu emprenhada de estrelas”. Mas não são só pássaros o que mantém Britto em Brasília. Ele reconhece que a cidade é um espaço privilegiado também para a vida profissional. Quando se aposentou, abriu um escritório de advocacia, bem perto do poder. 
Meu presente para Brasília: vida política
de maior consistência e mais pureza ética 





Árvores, luzes e traços 
Francisco Alvim, na extremidade da Península Norte: admiração pelo gênio do arquiteto (Foto: Roberto Castro)

O corpo diplomático resistiu enquanto pôde, mas não teve jeito. Em 1970, o Ministério das Relações Exteriores foi o último a ser transferido para a nova capital. Nesse ano, o então jovem diplomata Francisco Alvim servia na missão do Brasil junto à Unesco, em Paris. Ele se mudaria para Brasília apenas em maio de 1975. A sensação que teve assim que pousou foi ter bebido um copo d’água pelo nariz, tamanha a pureza do ar. Ao contrário de muitos dos seus colegas, desde o início Alvim encantou-se com a presença da natureza. “Essa é a única cidade do mundo em que você se sente dentro de um jardim”, diz. Na temporada seguinte à sua vinda, numa exposição do fotógrafo Rui Fachini, contou ter descoberto as luzes do planalto por meio das fotos, que mais pareciam pinturas hiper-realistas. Com o passar dos anos, foi se interessando cada vez mais por arquitetura e dedicou-se a apreciar uma terceira faceta de Brasília, a do tracejado suave de Lucio Costa. “O céu mergulha, você chega à extremidade. Isso não foi à toa, a gente sente a presença do arquiteto cósmico”, observa. Em 1995, deixou a capital para ser cônsul em Barcelona, depois ainda serviu em Roterdã e foi embaixador na Costa Rica antes de voltar. Sentiu que a cidade mudou mais nesses dez anos em que viveu fora do que nos vinte em que morou nela. “Brasília ganhou volume, peso, forma. As árvores cresceram”, diz Alvim, que afirma conhecer cada um dos abacateiros do Lago Norte, bairro onde mora. Ele aposentou-se em 2008 e não teve dúvida. Nascido em Minas Gerais, criou-se no Rio de Janeiro, rodou o mundo, mas escolheu ficar na capital do seu país. 
Meu presente para Brasília: políticos
que ela merece no governo local 


*Pesquisa de frases: Caroline Bchara e Letícia Carvalho

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