Com um déficit de 30 000 vagas só no Plano Piloto, muitos brasilienses vivem a difícil busca por um local onde estacionar
Por:por Ullisses Campbell (texto) e Bento Viana (fotos) - Revista Veja Brasília
Como muitos brasilienses, o funcionário público Ivan Siqueira depende do carro para fazer quase tudo na vida. Em dias úteis, sempre às 8h30, ele tira seu veículo da garagem no Park Sul, no Guará, e segue 15 quilômetros por vias retas até um edifício no Setor Bancário Norte. Ali, fora do trânsito, começa o trecho mais angustiante de sua ida ao trabalho. Em um roteiro compartilhado com outros milhares de moradores do Distrito Federal, Siqueira vê o estacionamento público com 1 240 lugares lotado. Há carros em todos os espaços, inclusive em pontos irregulares, como canteiros de plantas e calçadas. Sem opção, geralmente ele estaciona junto ao Teatro Nacional, na Esplanada dos Ministérios, a 2 quilômetros da portaria do prédio onde cumpre expediente. Tem início, então, uma segunda viagem, a pé, mais demorada que o trecho sobre rodas. “Quando tentava parar próximo, gastava até uma hora e vinte minutos para encontrar um lugar vazio”, conta Siqueira. Em um voo de helicóptero sobre o Plano Piloto durante o horário comercial, é possível constatar a dimensão desse drama cotidiano. Os automóveis dominam o cenário, principalmente na área central. Não à toa. A frota de carros particulares do DF cresceu 21% de 2010 até junho de 2014, enquanto a população aumentou 11% no mesmo período. Hoje, somos 2,8 milhões de habitantes convivendo com 1,5 milhão de automóveis. A rotina de quem trabalha ou vive na cidade tende a piorar. Em 2013, 11 755 carros novos foram emplacados por mês e conquistaram as ruas. Apenas no primeiro semestre deste ano, outros 74 026 passaram a circular no DF. Além de mais congestionamentos, esse mar de veículos já provoca um déficit de 30 000 vagas para estacionar no Plano Piloto, segundo dados de um estudo da Companhia Paulista de Desenvolvimento, feito sob encomenda para o Governo do Distrito Federal.
Ivan Siqueira: 15 quilômetros sobre rodas e mais 2 de caminhada para chegar ao escritório
O olho do furacão é, sem dúvida, o centro de Brasília, onde falta espaço para 7 500 veículos. Nessa região, é comum flagrar carros estacionados de forma irregular. Motoristas param automóveis até em lugares inusitados, como no meio-fio das famosas tesourinhas, um símbolo da cidade. Do alto, é possível ver as curvas de Niemeyer desenhadas pelos carros parados. Nesse contexto caótico, a indústria dos flanelinhas reina absoluta (veja o quadro no final da página). “Aqui, funciona assim: a pessoa larga o veículo onde bem entender. Os que confiam deixam a chave comigo. Outros levam. Quando chegam os policiais multando, telefono para o celular dos meus clientes e eles descem correndo”, explica Eliseu Barbosa, que dá expediente como guardador no Setor de Autarquias Sul. Essa prática se estende até a administrações de prédios comerciais. Várias delas têm por hábito enviar e-mails aos funcionários alertando-os sobre a presença de agentes da lei nas redondezas.
Em setores de grande concentração, outro fenômeno aparece com regularidade: motoristas param o carro sem acionar o freio de mão, bloqueando veículos. A solução do imbróglio fica com os flanelinhas, que empurram automóveis para lá e para cá, muitas vezes provocando pequenos amassados na lataria. Em plena Esplanada, o sufoco se repete. Lotada no Ministério da Fazenda, a procuradora federal Juliana Buarque prefere pagar 150 reais por mês a um guardador de veículos e deixar a chave com ele, numa relação sem nenhuma garantia. “É impossível encontrar um lugar perto do prédio no horário em que chego. Geralmente paro em fila dupla e ele estaciona o carro quando surge uma vaga”, conta a procuradora.
Juliana Buarque: a chave fica sempre com o flanelinha
Quem opta por deixar o veículo em raras garagens privadas sente o drama no bolso. Dentro do Setor Hoteleiro Sul, por exemplo, a mensalidade no estacionamento do Complexo Brasil 21 sai por 500 reais por mês. Mesmo aceitando esse alto custo, o interessado ainda precisa enfrentar uma fila que, atualmente, demanda três meses de espera.
Infelizmente, o suplício por uma vaga não se restringe à jornada de trabalho para os que moram nas Asas Sul e Norte. Ao chegar em casa, quem não tem espaço na garagem vive outra complicação. As quadras residenciais estão cada vez mais tomadas por veículos que não encontraram lugar vazio no comércio local, onde vigora uma anarquia quando o assunto é estacionamento. Nos horários de pico, principalmente durante as refeições, a fila dupla se transformou em fato corriqueiro. O acordo tácito entre os motoristas prega que basta uma buzinada para que o condutor do veículo de trás apareça e retire o carro. Nem sempre, contudo, o desfecho é civilizado. O Batalhão de Policiamento de Trânsito recebe pelo menos trinta ligações por dia de condutores reclamando que tiveram seu automóvel trancado por outro veículo próximo aos blocos dos comércios locais. “Muita gente não percebe, mas as vias comerciais têm quatro faixas de rolamento. Ao pararem o carro fora do local apropriado, em ambos os lados, os motoristas interditam duas delas”, explica o chefe operacional da instituição, major Sérgio Roberto Rabello. No ano passado, 18 064 carros foram multados por estarem parados irregularmente nas quadras comerciais, e 550 deles saíram guinchados. “Só não retiramos mais porque nem sempre a empilhadeira do Detran está disponível”, reclama o major.
Quem trabalha há mais de quinze anos na Esplanada dos Ministérios lembra com saudosismo da época em que as cooperativas de funcionários mantinham ônibus de transporte para seus associados, levando-os de casa até a labuta e vice-versa. O fim desse privilégio, em meados dos anos 90, acentuou a enxurrada de veículos nas cercanias dos prédios da região central, alterando a paisagem da cidade. “Se Niemeyer pudesse ver hoje como o centro do poder está tomado de carros, ficaria decepcionado com tamanha poluição visual”, diz o pesquisador da Universidade de Brasília Flávio Dias, especialista em trânsito. Lucio Costa fez questão de deixar registrada sua indignação numa carta intitulada “Brasília revisitada”. O documento foi enviado ao então governador José Aparecido em 1987, quando Costa visitou a capital e deparou com uma grande frota de automóveis. Naquela época, o urbanista que projetou Brasília já associava o excesso de veículos particulares à péssima estrutura de transporte urbano. “O que permanece incompreensível é não existir um serviço de ônibus impecável no Plano Piloto”, criticou, há exatos 27 anos.
Eixo Monumental: estacionamento improvisado em áreas desocupadas
Na raiz do problema há uma dependência — alguns classificariam de vício — do brasiliense com o automóvel, fruto da própria dinâmica da cidade. A setorização contribuiu para que os moradores se habituassem a usar o carro para qualquer programa. Até mesmo nas compras triviais dentro da superquadra onde moram. “É uma questão cultural. As pessoas aqui gostam de descer do carro bem em frente à porta do destino. Se pudesse, o brasiliense saltaria do banco do veículo direto para a cadeira do restaurante”, diz Flávio Dias. O secretário de Governo, Gustavo Ponce de Leon, tem opinião parecida. “É como se as rodas do automóvel fossem nossas pernas”, afirma. Um caso ocorrido na Cidade do Automóvel, local de concentração de concessionárias, na Via Estrutural, ilustra bem como é estreito o laço que liga o brasiliense ao carro. Para resolver o problema da falta de vagas, construiu-se um bolsão de estacionamento gratuito para os cerca de 5 000 funcionários que trabalham nas lojas do pedaço. Vans foram disponibilizadas para conduzi-los até os endereços de trabalho e, depois, de novo até seus veículos. Em dois meses, o espaço encontrava-se desativado. Pouquíssimas pessoas aderiram à ideia. “O carro aqui é uma extensão da nossa casa”, analisa o diretor-geral do Detran, Rômulo Félix. No órgão que coordena, uma consequência desse hábito aparece com destaque: a infração mais cometida na capital é estacionar em local proibido. Só no ano passado foram 129 647 multas desse tipo, o que representa um aumento de 41% em comparação com o número de 2012. “A única saída para resolver o problema da falta de vaga é investir em transporte público. Não há alternativa”, sentencia Félix.
Comercial da 209/210 Norte: fila dupla é cena corriqueira
O funcionário público Felippe Mohr bem que tentou trocar o automóvel pelo ônibus. Morador da 210 Norte, ele dá expediente no Setor Bancário Norte, ou seja, a dez minutos de carro de casa. Por causa da dificuldade em achar uma vaga, apostou no transporte público sobre rodas, mas desistiu após a segunda viagem. Na sua lista de reclamações aparecem velhos problemas do segmento, como a longa espera no ponto, a insuficiência de linhas e veículos e a falta de calçadas nos trajetos feitos a pé. “Eu chegava todo suado”, reclama. Hoje, Mohr prefere deixar seu automóvel a 1 quilômetro do prédio onde trabalha, numa área descampada conhecida como poeirão. Se morasse próximo de alguma estação de metrô, ele ainda poderia recorrer a essa alternativa. Mas a tímida malha vigente (42 quilômetros) atende uma pequena parcela da população. Nessa eleição, todos os candidatos ao governo falam em levar o transporte subterrâneo até o fim da Asa Norte e para a Praça dos Três Poderes. Ninguém explica, contudo, de onde viriam os bilhões necessários para a obra. Se saíssem do papel, essas ampliações seguramente reduziriam os bolsões de carros. De acordo com pesquisa encomendada pela Comissão de Transporte Público Coletivo da Câmara Legislativa, 31% dos proprietários de veículos manifestaram interesse em deixar o automóvel na garagem se o metrô chegar perto de seu local de trabalho.
Sem depender de grandes verbas e prazos longos, o DF teria algumas opções de rápida implantação. Em Londres, onde o trânsito se tornou um problema crucial, há pedágios urbanos e rodízio de placas — estratégia também adotada em São Paulo. Nos maiores centros urbanos dos Estados Unidos, paga-se para deixar o carro em qualquer vaga de rua. Aqui na capital, a última ideia foi objeto de uma pesquisa realizada sob sigilo pelo GDF. Nela, cidadãos consultados rejeitaram veementemente a implementação de estacionamento rotativo nas quadras comerciais do Plano Piloto. A reação é comum, mas a estratégia poderia amenizar o problema. Outra solução, mais plausível, está vinculada a novas áreas de estacionamento. No ano passado, o GDF tentou, por meio de uma parceria público-privada (PPP), viabilizar um ambicioso projeto de garagem subterrânea na Esplanada dos Ministérios. Pelo plano, seriam criados quatro níveis com capacidade para 15 000 veículos. A complexa obra custaria 800 milhões de reais e ficaria pronta em dois anos. No entanto, faltou dinheiro para a contrapartida governamental, e a empreitada acabou suspensa. Autor da ideia, o engenheiro de trânsito paulistano Taite Inenami lamenta o desfecho: “Seria a única maneira de tirar a área central da situação caótica em que se encontra”. Mas Inenami não acredita em uma mão única. Para o engenheiro, se o brasiliense não se desapegar um pouco do automóvel, continuará sofrendo em busca de vagas.
Vai pagar com débito ou crédito?
Flanelinhas faturam alto nos estacionamentos públicos da cidade
Edinaldo dos Santos: carro e casa própria com o dinheiro do ofício
Em uma cidade povoada por carros, quem trabalha tomando conta deles prospera. O flanelinha Edinaldo dos Santos que o diga. Há 27 anos vigiando veículos nas quadras do Setor Hoteleiro Norte, descobriu cedo que a atividadeé muito lucrativa. Ele migrou do sertão paraibano para o Distrito Federal com uma mão na frente e outra atrás, na década de 80. Instalou-se na região dos hotéis e passou a tomar conta de carros em troca de moedas. Hoje, tem cinquenta clientes fixos. Para cuidar de um veículo, cobra entre 1 e 5 reais. Como todos os profissionais da flanela, reforça o ordenado lavando automóveis. Sua limpeza externa sai a 15 reais; a completa custa 20 e inclui polimento com cera. Um detalhe importante do negócio: Santos aceita todos os cartões de crédito e débito. “Já passei até 1 real na máquina”, ele conta, rindo. Com o dinheiro que ganha ali, comprou casa própria (40 000 reais) na cidade de Planaltina de Goiás e um Corsa Sedã 2003 (18 000 reais). “Estou vendendo por 15 000 para comprar um carro maior”, anuncia. A atividade de vigiar automóveis é tão florescente que outros dois irmãos de Santos vieram do Nordeste recentemente e já estão lotados em outras quadras da região central. Flanelinhas do Congresso também não costumam reclamar da vida. Valdelino Cardoso comprou um Ford Ka 2006 por 13 000 reais só com os trocados que recebe. Ele atua há doze anos próximo do Anexo II da Câmara dos Deputados. No fim do mês, chega a faturar 3 800 reais. “A base do meu trabalho é a honestidade. Os meus clientes deixam até dinheiro no carro, e não toco em nada”, ensina. Esse laço de confiança fortalece a relação. Os servidores que chegam atrasados, por exemplo, largam o carro com Cardoso. Ele o estaciona e leva a chave até o freguês. Como trabalha de bermuda, saca do carro uma calça jeans para circular pelos corredores do principal edifício do Poder Legislativo. Os clientes fixos pagam 30 reais semanais pelo serviço de manobrista. Flanelinha ter carro pode ser inusitado, mas lavar cerca de vinte veículos por dia não é para qualquer um. “Muitas vezes fico com dor de cabeça por causa do sol forte”, reclama Cardoso. A grande vantagem reside no fato de que, no estacionamento mais concorrido do Congresso, a melhor vaga é sempre dele.