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#RACISMONUNCA » As cicatrizes que nem o tempo apaga

A primeira fase do Disque Racismo do DF recebeu uma média de 13 casos por mês entre março do ano passado e fevereiro. Na capital federal, acumulam-se histórias de humilhação e constrangimento por causa da cor da pele.

"Hoje em dia, a pessoa se assusta quando chamam um negro de fedorento, de macaco, mas acha normal relacionar todo negro ou toda negra a um empregado. Temos de lutar contra isso e faremos denunciando, colocando a boca no mundo" 

Verônica Soares da Silva

Doze mil ligações em 11 meses. Desse total, 153 denúncias confirmadas de racismo. Esse é o saldo do primeiro período de atuação do Disque Racismo do Distrito Federal, entre março de 2013 e fevereiro. A quantidade indica que, a cada mês, pelo menos 13 pessoas são humilhadas e discriminadas por conta da cor da pele na capital do país. O número é ainda maior se for levado em consideração que as queixas dos últimos sete meses não entraram no balanço, pois o sistema da Secretaria da Promoção da Igualdade Racial (Sepir) passa por uma restruturação.

Criado em março do ano passado, o Disque Racismo tem o objetivo de receber reclamações de racismo e de injúria racial. Por meio do número 156, não só as vítimas podem fazer as denúncias. Quem presenciou uma atitude preconceituosa também deve entrar em contato com o serviço. Além do apoio jurídico, o Estado oferece, por meio da Sepir, tratamento psicológico. Com a alteração do sistema, a pasta vai classificar os casos por locais e por regiões.

Quem passa por esse tipo de situação carrega para sempre as marcas do crime. A jornalista Verônica Soares da Silva, 36 anos, vive isso desde pequena. “O (caso) mais recente foi quando estava em uma parada de ônibus e uma mulher, sem nenhum motivo, virou e gritou: “Você, negra, tem de arrumar um pente para pentear o seu cabelo. Demorei uns cinco minutos para assimilar”. Verônica perdeu, inclusive, uma vaga de emprego. “A moça me disse que o meu cabelo não se encaixava no padrão da empresa, e eu teria de alisar. Eu disse a ela que negro tem, sim, o cabelo crespo”, conta (leia Depoimento).

Aqueles que crescem sendo discriminados também encontram uma maneira de se defender. A do psicanalista Roberto Menezes Rodrigues é se manter, sempre que pode, afastado fisicamente das pessoas. Depois de passar anos por situações constrangedoras por causa da cor da pele, criou um comportamento preventivo. “Nos aviões, eu sempre peço o assento do corredor para não incomodar. Nas filas, fico sempre longe de quem tá na frente, como se fosse uma autodefesa por ter visto diversas reações quando me olham”, conta Roberto.

Hoje, ele faz estudos para tentar entender e mensurar o tamanho das cicatrizes deixadas por essas agressões. “Uma senhora, branca, já pediu para se sentar em outro assento (no avião). Não tinha mais nenhum vago, e fomos obrigados a viajar um ao lado do outro. Isso machuca muito, e é preciso tratar essas sequelas emocionais”, afirma.

A ouvidora especializada da Sepir e coordenadora do Disque Racismo, Jacira Silva, chama a atenção para a importância de denunciar. Ela admite que há mais casos do que os números mostram, mas afirma que eles revelam uma credibilidade maior da população no serviço público. Segundo ela, as denúncias confirmadas de racismo são divididas em temas, como discriminação nos colégios, religiosidade, mercado de trabalho e comércio. “Existem muitos conflitos, a pessoa acaba chamando a outra de macaca e situações de seguranças que vão atrás de homem negro, por desconfiança. É importante perder o medo de fazer a queixa”, diz Jacira.


Queixas nacionais

A Ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir) também recebe denúncias. Desde 2011, foram 1.289 queixas, sendo 232 só nos primeiros oito meses do ano, uma média de 29 por mês. Os atendimentos dão origem a procedimentos administrativos e, em seguida, são encaminhados a órgãos federal, estadual e municipal. Os atendimentos são feitos pelo e-mail ouvidoria@seppir.gov.br ou pelo telefone 2025-7000.


Depoimento

Problema institucional

“Todo negro tem milhões de histórias para contar. Até porque o racismo é um problema institucional. É relacionar o negro a um macaco, achar normal que ele ganhe menos, que more na periferia e trabalhe como empregado, gari, um subordinado qualquer. Desde pequena, vivo isso. Quando entrei no meu primeiro emprego, ganhava R$ 500 a menos do que todos os outros. A desculpa era porque a minha vaga tinha sido criada, mas todos que entraram depois de mim recebiam mais. Eu sabia que era por ser negra, humilde. Nesse trabalho mesmo, uma colega veio falar comigo uma vez. Perguntou onde eu morava. Respondi: em Brasilinha (Planaltina de Goiás). Na mesma hora, sem cerimônia, ela me respondeu: ‘Menina, sua mãe não está precisando trabalhar, não? Tô precisando de uma empregada lá em casa’. A minha mãe já tinha morrido e nunca tinha trabalhado como doméstica. Outra vez, em uma consulta ao INSS, disse que gostaria de saber se o meu patrão tinha depositado o meu benefício. Sem olhar na minha cara, a funcionária disse: ‘Você é emprega doméstica, né?” A gente sabe que é pela cor da pele. Hoje em dia, a pessoa se assusta quando chamam um negro de fedorento, de ‘nego’, macaco, mas acha normal relacionar todo negro ou toda negra a um empregado. Temos de lutar contra isso e faremos denunciando, colocando a boca no mundo.”

Verônica Soares da Silva, 36 anos, jornalista


Artigo

 (Carlos Moura/CB/D.A Press)

Racismo, antes de ser uma ideia, uma ação ou um valor, ou melhor, desvalor, é uma violência daquelas que eu preferiria que fosse na pele, mesmo na intensidade que desejassem, mas não que fosse sobre a pele, esta que mata o indivíduo sem qualquer arroubo do seu corpo, mata de forma invisível e vagarosa. Assim acontece entre aquilo que foi das piadinhas, do humor “negro”, dos chavões “samba do crioulo doido” até a exclusão, a não existência, ao repúdio. Da criança escurinha, do universitário que tem rabo de macaco e do juiz que não pode ser juiz, aquelas ideias, valores e ações só não mataram porque a pele é forte.

Uma criança que poderia ser a mais saudável, brincalhona e inteligente só não poderia ser a melhor porque era “escurinha”. E crescer não foi o suficiente. Certa vez, na universidade, depois de insistir com o professor para me explicar um conteúdo que há tempo vinha sendo protelado, não só fui vítima de considerações expiatórias, como a pele teve de sentir a declaração daquele educador que perguntava sobre “quem teria cortado o rabo do macaco”.

Nada continuava sendo suficiente, inclusive para ser um juiz, que ainda é perguntado se à noite estará de plantão na portaria do prédio onde mora. Na pele, continuo de pé. Sobre a pele, “põe-me como selo sobre o teu coração, como selo sobre o teu braço, porque o amor é forte como a morte” (Cânticos 8:6).

Fábio Francisco Esteves, juiz do TJDFT



Por: Camila Costa - Kelly Almeida - Correio Braziliense - 12/09/2014

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