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ENTREVISTA: MINISTRA CÁRMEN LÚCIA » É preciso ter mais audácia pelo país

Por: Ana Dubeux » Ana Maria Campos » Carlos Alexandre » Denise Rothenburg

"As pessoas de bem têm que reagir e agir no sentido de mudar a situação e não de abandonar as coisas como se não tivessem a ver com elas"

E la foi a primeira mulher a presidir o Tribunal Superior Eleitoral. No próximo ano,  assumirá a presidência da mais alta Corte de Justiça do país. A mineira Cármen Lúcia Antunes Rocha se considera uma juíza 24 horas por dia, tamanha a dedicação aos 1,6 mil processos que tramitam por seu gabinete. Acorda às 5h15, trabalha até 18 horas por dia. Mas também está atenta ao que acontece longe do suntuoso palácio do Supremo Tribunal Federal. Gosta de dirigir o próprio carro, frequentar o mercado central de Belo Horizonte, saber o preço dos produtos nas prateleiras. Cármen Lúcia assegura que o juiz é sensível às demandas da população, mas deve cumprir o compromisso com a Constituição. “Na hora de julgar, não posso olhar senão para o que está no processo e qual a lei se aplica”. Ela acredita que a insatisfação popular se deve à ineficiência das políticas públicas, que não  asseguram os direitos estabelecidos pela lei. E entende que o brasileiro precisa dar um passo além de reclamar. “As pessoas de bem têm que reagir e agir para mudar a situação e não de abandonar as coisas como se não tivessem a ver com elas.” Apesar da grave crise política e econômica, a ministra considera que o país passa por um amadurecimento. “Não há risco institucional.” Nesta entrevista ao Correio, admite que há preconceito contra mulher no Judiciário.

Quero trabalhar até 104 anos
Em Montes Claros, só nasci. Como não tinha médico em Espinosa, meu pai levava minha mãe pra lá. Somos sete irmãos, sou a terceira, a primeira mulher. Papai fez semana passada 97 anos. Trabalhando. Começou com 12 anos. Agora, nessa reforma da casa que estou fazendo, ele me ajuda, inclusive financeiramente.

Minha mãe tinha duas características: bom humor e justiça. A gente perguntava, qual o filho preferido e ela dizia: todo filho tem só uma mãe e toda mãe tem um filho único. Era muito justa. Uma característica da minha família é não ter compromisso com o mau humor.
 

Quero trabalhar até os 104. Mas não precisa ser num cargo  público. Posso voltar a advogar. Nos Estados Unidos, perguntei a um juiz de 92 anos: “Soube que o senhor vai se aposentar...” Ele disse: ”É que quero advogar e, se demorar muito tempo, vai ficar tarde para começar”. 
 

Sempre soube que ia estudar direito. O direito constitucional tem a ver com o que a gente passava. Não podia falar nada, escolher o presidente do DA, não podia falar certas coisas que os professores ficavam aflitos. O direito constitucional é o direito do ser humano. A pessoa pode nascer e morrer, aliás, convém, sem passar perto do Código Penal. Mas, da Constituição é impossível, porque o direito à vida está escrito lá. Ela diz: “Todos são iguais perante a lei”. Todo mundo entende. O cidadão  fala assim: “Fui discriminado, doutora”. Quando perguntam a quem perdeu um filho atropelado, o que você quer agora, o que a pessoa responde? Justiça.  A pessoa não sabe a técnica. Mas sabe que precisa de uma resposta.

                              Em Espinosa (MG): "Sempre soube que ia estudar direito"
                         Em 1989, durante palestra: paixão por Direito Constitucional

                Em 2002: mais de 25 anos como procuradora antes de ir ao STF

                     Com Itamar Franco, em 2002: se necessário, parecer na madrugada

A senhora citou recentemente que o momento exige que os homens de bem tenham a ousadia dos canalhas... O que quis dizer?
Essa frase não é minha. Citei o (Benjamin) Disraeli. Meu pai gosta de repetir essa frase e saiu como minha. Acho que nós nos conformamos... Talvez a palavra nem seja conformar. As pessoas saem às ruas e começa a ter muito assalto. Ao invés de tomar providências e reivindicar mais segurança, a pessoa se tranca dentro de casa, põe mais alarme. E deixa a rua para o assalto acontecer. A vida não pode ser desse jeito, porque senão o mal vence o bem. A frase do Disraeli é importante por isso. As pessoas de bem têm que reagir e agir no sentido de mudar a situação e não de abandonar as coisas como se não tivessem a ver com elas. Os assaltantes, traficantes, acabam tendo uma audácia muito maior porque sabem que as pessoas não vão reagir. Então, é preciso que quem seja de bem tenha a audácia para também reagir.

A frase, num contexto de crise nacional, se encaixa neste momento?
Escuto isso desde menina. Desde sempre, temos situações que são como essa em que as pessoas achavam assim: já que estão ocorrendo problemas com políticos, a gente não se mete em política. Então já que a rua está perigosa, não vou sair. Se a escola está ruim, ponho meu filho numa escola particular e não tomo conhecimento. No que disser respeito ao outro e à sua vida, você tem que agir. O melhor país do mundo ou o pior país do mundo não caiu do céu, nem nasceu do inferno.

É uma questão cultural?
O brasileiro está aprendendo a se incomodar e a se desincomodar há relativamente pouco tempo. Tivemos grandes manifestações na década de 1960, a famosa passeata dos 100 mil. Tivemos em 2013, com novas manifestações. Mas, em geral, o cidadão brasileiro vem sendo individualista, não pensa na sociedade, não quer participar.

No Congresso eles também pensam mais em si?
Não saberia dizer se hoje é muito diferente do que foi antes. A percepção, em geral, é de que pensa-se muito pouco no que o povo realmente precisa. O momento, no Brasil, não é de dizer o que o Estado está fazendo por meio de seu legislador, de seu político, de seu juiz. O momento é de perguntar o que nós, cidadãos, estamos querendo, que país queremos ter e o que fazer para ter isso.

A população reclama dos Poderes constituídos, por ajudarem muito pouco. Há uma acomodação em geral ou só do cidadão?
A acomodação é geral. Há uma certa acomodação incômoda. Porque não sei se há verdadeiramente a certeza de que o povo não sabe muito bem pensar de maneira coletiva o que é melhor para o país. Não tivemos muito esse aprendizado. Cidadania e democracia se apreende. Segundo, a ideia de solidariedade é que me faz pensar num país como um todo. Na hora em  que eles falam, querem que  os Poderes constituídos, Executivo e Legislativo, ouçam. Não sei se ouvem e se dão a resposta adequada.

E o  Judiciário?
O Judiciário tem que fazer o que a Constituição determina. Não está no nosso alvitre decidir o que a população quer.  Muitas vezes, a gente vota contra a gente mesmo. Já votei contra mim, mas fico ao lado da Constituição. Senão, não se tem uma segurança jurídica. Muitas vezes, o Supremo é contra o majoritário para garantir uma segurança de direito.

A insatisfação hoje é maior? 
Do que já foi na década de 1980, por exemplo, com certeza. O slogan de campanha, da Nova República, era isso: não queremos mais o país do jeito que está. Para isso, a alternativa oferecida, negociada naquela ocasião, foi de uma nova Constituição, o Poder Constituinte. Mesmo o Tancredo tendo morrido, o presidente Sarney se manteve, porque o povo já estava com a Constituinte.

A crise política e econômica leva a uma grande insatisfação. Há algum risco institucional?
Não. Acho que o Brasil amadureceu politicamente. O cidadão, desde os jovens até os mais idosos, têm ciência muito clara do que representa o regime democrático. Não há risco institucional. As instituições estão funcionando, a insatisfação demonstrada em geral nas ruas é basicamente com políticas públicas que podem ser mudadas pelas  próprias instituições. A maior busca hoje no Brasil é pela efetivação de direitos sociais. Muito diferente da minha geração, que, na década de 1980, lutava por direitos políticos. A gente queria votar. Não podia votar nem para o DA da Faculdade de Direito, nem em faculdade nenhuma. Por que há uma insatisfação? Porque a Constituição é de 1988 e estamos em 2015. O processo de efetivação da Constituição já durou tempo bastante, uma geração.

Precisa renovar a Constituição?
Não. O direito à educação está previsto na Constituição. Precisa é cumprir rigorosamente o que está na Constituição. E políticas públicas são políticas que precisam ser adotadas objetivamente para que sejam implementadas o tempo todo. Da noite para o dia, não acontece.

Essa insatisfação da população está muito ligada às denúncias graves de corrupção. Bilhões de reais são desviados, e o governo fala em aumentar impostos. Este é um momento peculiar?
Acho que sim, mas veja: isso é um sintoma de amadurecimento democrático porque, se as pessoas vissem isso e não reagissem, seria muito mais preocupante. Significaria que chegamos a uma insensibilidade social em relação ao Estado, como se não tivesse nada a ver com a gente. Acho o contrário. Isso é um sintoma positivo de o cidadão dizer: vamos moralizar, vamos cumprir a Constituição.

A senhora não vê ameaça institucional. Há risco de impeachment?
Não sei.

O fato de essas denúncias estarem vindo à tona é um avanço da nossa sociedade? 
Com toda certeza, com toda certeza. O Ministério Público faz a sua parte, a Polícia Federal tem autonomia e cumpre os seus deveres, o poder Judiciário está julgando. Isso é um avanço institucional.

A demonstração de avanço começou no julgamento do Mensalão? 
Começou muito antes. Na realidade, talvez tenha havido uma divulgação do julgamento no STF da AP 470, mas verdadeiramente a lei de improbidade administrativa fez com que o Ministério Público, como previsto e estruturado na Constituição, desse ensejo a que promotores pudessem investigar nos quase 6 mil municípios do Brasil. Então, quando se trata de uma ação que chegou ao afastamento de um prefeito de uma cidade do interior, não tem repercussão a não ser para aquela comunidade. Mas, desde essa ocasião, desde o fim da década de 1980, e principalmente na década de 1990, o MP se tornou um  órgão muito atuante e levou ao Judiciário as questões que antes não eram levadas.

Há quem critique até de forma dura a atuação do MP. Concorda?
O Ministério Público atua de maneira extremamente correta, muito ciosos, eles são em seus pareceres. Tenho que um dos pontos altos da Constituição de 1988 foi justamente a concepção e a estrutura do MP, que foi, em grande parte, calçada pelas ideias do ministro Sepúlveda Pertence. Começou com a comissão dos notáveis, que fez o primeiro esboço de Constituição, e ele cuidou desse tema. Portanto, acho que o Rodrigo Janot, que é o procurador-geral, vem exatamente na mesma esteira do que foi a atuação e os ensinamentos de Sepúlveda.

Os advogados reclamam das delações premiadas na Lava-Jato, que haveria excessos. Concorda?
Não sou a relatora da Lava-Jato. Sobre ela, não falo. Mas posso dizer que o que já veio a julgamento na segunda turma sobre esse tema foi mantido. Os questionamentos feitos não desfizeram atos anteriores. E também esse é um instituto relativamente novo, então não sei exatamente qual é a reclamação feita, até porque alguns que fizeram não estavam presos.

A Justiça deveria ser mais célere?
Deveria ser muito mais rápida, mas aí a sociedade também precisa discutir isso. Talvez o erro seja da comunidade jurídica e do Judiciário, de falar com mais clareza as coisas, porque esse juridiquês nosso não é nem compreendido pelas pessoas. É muito chato mesmo. O que as pessoas precisam compreender é o seguinte: sou juíza e me submeto ao que a lei determina. Se a lei dá ao cidadão o direito de recorrer quantas vezes ele quiser, não posso fechar o protocolo do poder Judiciário.

O juridiquês atrapalha e falta  também mais proximidade, não ?
O juiz não é autista para não saber em que mundo vive. Pelo contrário. A gente sabe. Gosto de ir ao supermercado, sei quanto custa minha conta. Vou ao mercado central de BH toda vez que estou lá, reclamo do preço. Mas, na hora de julgar, não posso olhar, senão para o que está no processo e qual lei se aplica. Posso tentar, o mais possível, explicar o resultado, explicar o porquê. Agora sempre terei alguém que vai ficar contra mim, porque quem perde a ação não vai acreditar que não tinha o direito. Ele não é convencido pelo juiz.

No mensalão, o núcleo operador continua preso. Os integrantes do núcleo político, salvo algumas exceções, não. Não há uma discrepância?
Se o Supremo decidiu, é isso que está decidido. E decidimos de acordo com a lei.  Não tem discussão. O que talvez fique é isso que disse. A lei é um conhecimento técnico. Se nós não conseguimos debulhar, pormenorizar esse conhecimento à sociedade, em casos emocionais, sempre acaba tendo os que vão ser contra ou a favor de uma ou outra pessoa.

A senhora diz que seu rumo é seguir a Constituição. Mas isso não significa que concorde com tudo que está escrito. 
Não. Eu já votei contra mim.

A senhora sofre com isso?
Não... A lã não pesa ao carneiro (risos). A quem tem vocação, nada é pesado. Nem é pesado o cargo, nem é pesado o trabalho. Se eu tenho de ficar 18 horas, eu fico. O corpo às vezes reclama — ninguém pesa 40 quilos, a essa altura, impunemente. Mas sei que essa é a minha função. Você nunca fica alegre quando tem de aplicar penas, por exemplo. Isso não alegra ninguém. Porque só precisa do direito penal quem errou na vida. Mas, em contraprestação, quando você garante a efetividade do direito a uma pessoa que está para morrer, que precisou vir ao Poder Judiciário para ter um tratamento, uma cirurgia, também é muito compensador.

Como é sua rotina?
Acordo 5h15, todos os dias. Faço um primeiro café, alguma coisa mais trivial, leio o jornal. E, às 6h30, começo. Às segundas e sextas, venho para o Supremo na parte da manhã, para audiências e reuniões internas. Terças, quartas e quintas, nós temos sessão. Então venho de manhã para ler os processos, fico trabalhando. E à tarde vou ao plenário.

Ainda dirige o próprio carro?
Dirijo, claro. A outra alternativa é vir de metrô (risos).

E a senhora sempre foi esbelta assim, magrinha, em forma?
Agora estou mais magra.

É a tensão do país?
Acho que é preocupação...

Tira o seu sono?
Tira muito. Estou ficando velha, né? Velhice é assim. A minha tia dizia: “Ai, perdi o sono com tanta preocupação com fulana...” Falava assim: “Que perder sono por causa de preocupação...” Outro dia eu lembrei disso e falei bem assim: “Pronto. Cheguei ao mesmo ponto!” (risos)

Mas se a senhora, aqui, está preocupada a ponto de perder o sono, nós temos de nos preocupar bastante, não?
Não. Me preocupo com tudo que está acontecendo. Hoje, a demanda é muito maior.

É um momento crítico, não?
O Brasil passa por um momento, mas não é a questão política. Me preocupa isso que você disse: o cidadão quer o processo dele julgado em determinado tempo. Sou juíza, preciso dar uma resposta a isso. E não tem milagre. Então, a demanda é cada vez maior. Estamos chegando a quase 100 milhões de processos, para um Judiciário que tem 18 mil juízes, com mais de 20% dos cargos vagos. Tenho minhas preocupações, não preciso olhar para os outros poderes. O que tenho aqui como responsabilidade é cada vez maior.

Já é suficiente para não dormir?
É suficiente para ter um sono muito menos descansado. O chamado sono dos justos não é para os juízes. É para aquele que entregou a sua causa para um advogado. Portanto,  agora pode dormir, e o advogado é que vai perder o sono. Era isso que a gente falava quando era procuradora. O governador passa o problema para você, ele vai dormir, e você vara a madrugada. Nós temos no Poder Judiciário desafios enormes. Temos uma Justiça artesanal em uma sociedade industrial. E o cidadão tem sim o direito de ter uma decisão. Com esse volume de trabalho, é uma coisa assustadora.

Alguma vez sentiu preconceito no trabalho? 
No Supremo, em relação aos colegas, não. Mas existe preconceito na comunidade jurídica. Em 1982, quando fiz concurso para procuradora, um examinador da banca, professor de direito, me disse expressamente na prova oral: “Se a senhora for realmente muito melhor do que os outros, como dizem, vai passar. Mas, se for igual ao homem, nós preferimos homem como procurador”. Isso, numa prova oral, te desestabiliza facilmente. Hoje, ninguém falaria isso. Agora, o preconceito continua? Continua, ele só não se manifesta mais. Mudou para melhor? Mudou, porque ele agora precisa de muito mais motivos para afastar. O preconceito por ser juíza diminuiu? Não. Quem não gosta de mulher em cargo público diz isso: “Perdi porque o juiz era uma mulher, e mulher é muito mais rigorosa”. Cansam de dizer isso.

Parte dos problemas da presidente Dilma tem a ver com o preconceito em relação à mulher?
Não sei exatamente definir quais os problemas a que você está se referindo. Mas a presidente pode e deve ter sofrido preconceito. É como nos disse expressamente a presidente do Chile, Michelle Bachelet, em um encontro de juízas de tribunais constitucionais na Argentina: “Sou a presidente da República; a presidente do Senado é uma mulher (Isabela Allende); a presidente do Tribunal Constitucional do Chile é uma mulher (Marisol Peña); e a presidente do principal sindicato do Chile é uma mulher (Bárbara Figueroa). Vamos dizer que não há preconceito? Há.” Não é a circunstância daquele momento que faz com que tenha acabado o preconceito.

Como acabar com isso?
É uma questão mais grave, porque é cultural. Há uma coisa sedimentada.

Apesar de a lei dizer que há igualdade de gênero. 
O princípio mais vezes repetido na Constituição é o da igualdade. Porque o problema maior do Brasil são todas as formas de desigualdade. Desigualdade de gênero; desigualdade pelo fato de a pessoa ser negra; desigualdade por ser indígena; desigualdade porque é pobre; desigualdade de toda natureza. Então a Constituição repete mais vezes exatamente porque precisa igualar. E a igualação é um processo, uma conquista. Mudamos, sim. Imagine que, há 30 anos, cogitar uma mulher no STF levantava questões como: não há possibilidade porque, inclusive, vai criar um constrangimento lá. Era isso que se dizia.

O preconceito no meio jurídico era tal a ponto de se proibir o uso de calça comprida, regra que deixou de vigorar há pouco tempo. 
Não poderia fazer sustentação lá (risos). E veja a questão dos símbolos. Quer dizer que pode vir de minissaia — aí sim inadequado, para dizer o mínimo — e de calça comprida não? Aí tem a simbologia dos nossos contratos sociais. Mas isso tudo é um processo muito difícil. Na nossa campanha Justiça pela paz em Casa, a gente tem visto como é difícil. Há um número assustador de agravos, de toda natureza, contra a mulher. Por que bate, por que mata? Porque é mulher. A mulher é o único ser que, pela sua condição humana, é assassinada. Mata-se por todas as razões, mas ninguém mata porque é homem. Na hora que você pergunta ao agressor o que aconteceu, ele conta: “Falei 30 vezes que não era para fritar o ovo desse jeito, mas é de pirraça!”

A senhora já pegou casos assim?
Não, porque aí é prova. Mas nós escutamos muitas vezes: “Não sou agressor”. E dizíamos: mas está aqui no processo, o juiz diz que o senhor agrediu a fulana. “Não. Fulana, não. Fulana é minha mulher.” Você não imagina que alguém não saiba, e ele não sabe. Quando se falou em agressão, ele achou que estava se referindo a uma terceira pessoa.

Nesse processo lento, qualquer avanço é polêmico, como, por exemplo, a Lei Maria da Penha. 
É em todo lugar. Toda novidade é assim. Há dois anos, a ministra da Justiça francesa (Christiane Taubira), para lutar pela legitimidade dos filhos de casais homossexuais, passou horrores. E estamos falando de um país que fez a Revolução Francesa, pela liberdade e pela igualdade. E o tanto que ela foi combatida, ela, uma mulher, negra.

Ela própria , vítima de preconceito. 
Ela foi vítima. Tem um livro, um dos mais vendidos na França L’esclavage raconté à ma fille. (A escravidão contada para minha filha, em tradução livre).

O voto  contra a censura às biografias foi seu melhor momento aqui?
Não. No Supremo de hoje, na hora que a gente vota, acabou. Passa para o próximo processo. Não tem esse sossego.

Não dá nem para ser feliz, né?
Para ser feliz, dá (risos). Porque não tenho vocação para ser infeliz. E também acho que um juiz infeliz deve ser ruim, né?

No mensalão  seus votos foram muito firmes...
A gente estudou barbaramente aquilo. Sabia de cor algumas passagens de tanto que a gente teve de se debruçar. Mas processo é assim, é que nem aula. Acabou? Você prepara a próxima.

A senhora não vive de passado. 
Não. Essa é uma característica minha. Fui procuradora durante 26 anos, cheguei a procuradora-geral. E outro dia eu pelejei para lembrar: como é que era mesmo a sala? Comigo é assim. Acabou? Acabou. Não falo mais sobre isso. Busco outra coisa para viver. O que tenho que viver é hoje. O que guardo são as lições da minha vida que fizeram ser o que sou, as pessoas que participam dessa paisagem humana.

É juíza 24 horas por dia?
Sou. Não deixo de ser a cidadã. Mas já saí do cinema porque não sabia o que estava passando. Em dois ou três filmes, não tenho ideia do que era aquilo. Tive que sair no meio da sessão, porque me perguntava “Mas o que é isso?”. A  mesma coisa acontece no recesso.  É o telefone que chama e você pensa que é do tribunal. A gente não é play-stop.

Não dá para fechar a porta e dizer: "Agora não tenho mais nada a ver com o Supremo".
Tenho pensado muito nas pessoas que têm profissões ou cargos, especialmente privados (no público não dá, porque se o protocolo não fecha, sua cabeça não para ). Fico pensando assim: “Já pensou se pudesse ir para casa às seis da tarde? Se pudesse ir a uma cantoria?” Fico me perguntando se saberia viver isso agora ou se essa profissão virou uma segunda pele. Porque, como procuradora, era assim. O governador telefonava, às duas da manhã. Precisava de um parecer às nove da manhã. Havia um coração a ser transplantado para se buscar no Rio Grande do Norte. E tem prazo. Tinha de dar o parecer, para acobertar o governador de que não havia ilegalidade. E também a menina não podia morrer, não podia esperar. Então é modo contínuo. Quando tiver uma precisão, tem uma precisão.

Mas não tem uma hora de relaxamento? Ouvindo música...
Não, esse tal de relax... É uma das coisas que eu quero mudar. A corda muito esticada é um problema. Mas não tenho paciência para caminhada, porque aí eu correria (risos). Todo início de ano, falo assim: vou melhorar em tal coisa. E tenho falhado muito comigo. Por exemplo: resolvi que minha cama não seria prateleira. Vou juntando livro, papel etc. Eu consegui. Como? Tem vários banquinhos que coloquei em volta. Até o dia em que cheguei e resolvi pular, porque não estava conseguindo passar sem correr um risco (risos). Quebrei a cama. Aí falei assim: vou tirar o processo do quarto, que não é lugar de processo. Aí começou a ficar mais confortável...

Aí a senhora foi dormir no outro quarto (risos).
Teve um ano que resolvi que minha bolsa não ia ser tão pesada. Não precisava carregar a Constituição na bolsa, não sei o quê na bolsa etc. Esse já desisti. Nós, mulheres, já entramos em desvantagem. Os homens são mais leves, então aguentam mais.Preciso ter uma hora que, mesmo que a cabeça continue, o corpo pare. Resolvi que, em 2015, não subiria mais escada de dois em dois degraus. Já estamos em setembro. Dia desses, na hora em que pulei ali, saindo do plenário, pensei: qualquer hora vou cair aqui e vai ser um escândalo.

Ficou feliz com a PEC que aumentou o prazo da aposentadoria?
Não. Gosto do trabalho, mas repito o que dizia antes de entrar:  para o Supremo, seria conveniente discutir a questão de ter mandato. Temos juízes, como o ministro Celso de Mello, um decano que honraria qualquer tribunal do mundo; ministro Marco Aurélio, que está presente o tempo todo. Não tem a ver com as pessoas. Num tribunal constitucional como o nosso, a carga de trabalho é desumana. Sempre achei que é preciso se discutir a possibilidade de ter mandato, como os tribunais constitucionais em geral. A idade não é o único parâmetro.

A senhora era feminista?
Tinha tanta coisa mais importante. Estávamos na faculdade com o Congresso fechado. Fiz prova de direito constitucional com o Congresso fechado. Minhas preocupações eram outras, mas havia o direito da mulher, a igualdade de condições, a igualdade de oportunidades. É que cada fase na vida tem seu problema. Naquela fase, estávamos mais preocupadas em fazer o Brasil voltar pelo menos ao Estado de Direito.

Chegou a ter algum contato com a presidente Dilma, no tempo de Minas?
Não. Ela saiu com 19 anos, acho. E também eu era interna no colégio. A presidente era da... Savassi. Eu estava amordaçada. Passei de um internato de freira para o internato do Brasil. Não, não tive contato nenhum. Sempre fui técnica. Sou da área jurídica.

“Existe preconceito contra a mulher na comunidade jurídica. No Supremo, em relação aos colegas, não”

“É preciso se discutir a possibilidade de ter mandato (no STF), como os tribunais constitucionais em geral. A idade não é o único parâmetro”

“A presidente (Dilma) era da... Savassi. Eu estava amordaçada. Passei de um internato de freira para o internato do Brasil”

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Por: Ana Dubeux » Ana Maria Campos » Carlos Alexandre » Denise Rothenburg - Fotos: Marcelo Ferreira/CB/D.A.Press - Cristina Horta/EM/D.A.Press - Maria Tereza Correia/EM/D.A.Press - Arquivo/EM/D.A.Press

1 Comentários

  1. Pagina no Fb em homenagem a Exma Ministra Cármen Lúcia: https://www.facebook.com/NossaCarmenLucia2016/?fref=ts

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