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"Falta compromisso no governo e no Congresso", diz Gilson Langaro Dipp

Em entrevista ao Correio Gilson Dipp, ministro aposentado do STJ, fala sobre Eduardo Cunha, Dilma Rousseff, Operação Lava-Jato, briga entre poderes e corrupção

O gaúcho Gilson Dipp, 71 anos, é conhecido entre magistrados, investigadores e advogados como o criador das varas especializadas em crimes financeiros e lavagem de dinheiro. Ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça, ele tem o respeito e admiração de juízes como Sérgio Moro, responsável pelos processos da Operação Lava-Jato e a quem deu posse em Curitiba. Ao longo da vida profissional, Dipp atuou no STJ, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Presidiu a comissão de reforma do Código de Processo Penal e foi coordenador da Comissão Nacional da Verdade até setembro de 2012, quando, segundo as próprias palavras, “caiu doente” e passou seis meses internado num hospital da capital paulista. “Eu morri e voltei.”

Observador atento do atual cenário de crise no país, Dipp conversou com o Correio durante quase duas horas na tarde da última sexta-feira, num escritório de advocacia no início da Asa Sul, que passou a frequentar depois que se aposentou do STJ. “Há uma falta de compromisso do Congresso e do Executivo em executar o papel constitucional. Isso é uma deslegitimação, várias questões não são de ordem constitucional e você vê o Supremo tendo de discutir uma crise imediata”, disse ele, que, ainda assim, acredita que a decisão do ministro Edson Fachin de suspender a instalação da comissão do impeachment foi prudente. 


A seguir, os principais trechos da entrevista, em que Dipp fala de Eduardo Cunha, Dilma Rousseff, Operação Lava-Jato, briga entre poderes, corrupção, males do Judiciário, atuação do CNJ, delações premiadas, acordos de leniência e Lei da Anistia.

Como avalia o atual momento do país?
Não tem quem possa dizer que não vê com extrema preocupação. Estamos vivendo uma crise nos Três Poderes: Legislativo, Executivo e desembocando no Judiciário. Há uma falta de efetividade de compromisso do Congresso e do próprio Executivo em executar o papel constitucional. Volta e meia têm de pedir ajuda ao Supremo. Isso é uma deslegitimação. Várias das questões não são de ordem constitucional, e muitas vezes você vê o Supremo tendo de discutir uma crise imediata, política e econômica, ou de disputa de poder. E, aí, vem a judicialização da política. O Supremo tem limites. O STF não pode avançar onde não houver uma afronta direta e efetiva a uma norma constitucional.

O Supremo já não avançou?
O STF vem legislando e não é de a agora. No entanto, pelo que vi, a medida liminar dada pelo ministro Fachin foi prudente para o momento.

Por quê?
Há uma crise palpável, havia uma discussão sobre legitimidade da formação da comissão que vai analisar o impeachment, o voto secreto. Tudo isso com os ânimos acirradíssimos, a decisão foi prudente por suspender por uma semana para que o plenário examinasse o pedido.

Mas há a expectativa de que não termine na próxima semana.
O ministro Fachin já disse que, se não for examinado na quarta-feira, a liminar perde o efeito e volta a ocorrer tudo como antes. E assim é que tem de ser. O processo é do Legislativo, já temos precedentes, como no caso do Collor.

Não o preocupa que o ministro Fachin defina o rito?
Se isso ocorrer, o STF, como um órgão integrante dos Três Poderes, está se aproveitando da fraqueza do Congresso e legislando, sim. Mas isso se acontecer.

Estará extrapolando?
Ele pode dizer que a Constituição está ferida gravemente em determinado dispositivo. Agora, se recomendar o rito processual do julgamento do impeachment, que é jurídico, mas, principalmente, político, estaria extrapolando. E isso não é bom nem para o Congresso, nem para o STF, nem para o Brasil.

Eduardo Cunha tem legitimidade para comandar o processo?
Ninguém conhece melhor o regimento interno hoje do que Eduardo Cunha. Essa vantagem ele tem sobre os seus pares. Aliás, três pessoas tiveram atuação destacada no Congresso porque conheciam o regimento interno. Nelson Jobim, José Genoino e Cunha. Claro que os fatos noticiados que pesam contra ele são graves. Agora, ele está no exercício da presidência. Não é o Eduardo Cunha, é o presidente da Câmara. É a pessoa que está exercendo a função. E enquanto ele não for destituído, tem legitimidade jurídica. A legitimidade moral é questionável.

Cunha está usando o cargo para travar o processo contra ele?
O Congresso é feito de lideranças. Se um parlamentar tem no seu âmbito de atuação um número de parlamentares que o apoiam, isso é também liderança. Pode se questionar a ética, mas o Congresso é um só. Se há manobras regimentais — e podem haver — decorrem também da inoperância daqueles que não conhecem o regimento. Ou não procuram conhecer ou não procuram agir. Quem o apoia são deputados também. Não é gente de fora, é gente do Congresso. A legitimidade é da função, e a função simplesmente foi um juízo de admissibilidade, que é meramente formal. É claro que temos um presidente da Câmara desgastado, mas isso não tira a legitimidade.

Na base governista, os parlamentares não confrontam Cunha?
As ações que se vê no jornal, chamadas de manobras regimentais, continuam vigorando. Há, vamos dizer, uma incompetência dos seus opositores em resolver. Não consigo ver de outra maneira. Ele não é rei, é o presidente da Câmara, podendo ser destituído. O problema está numa composição, em que o Congresso e a Câmara não têm lideranças, forças para implementar políticas públicas na sua jurisdição. Está faltando liderança, competência para destituí-lo.

Por interesse, talvez?
Interesse tem, interesses políticos, partidários, de ambas as partes.

Como avalia o governo Dilma?
A base de sustentação político-partidária da presidente é muito ruim. E isso se explica por esse tipo de presidencialismo de troca de favores. Há 30 ministérios, e a presidente não falou nem com a metade pessoalmente. A base de sustentação, além da composição partidária, é vulnerável. A Operação Lava-jato apurou que 95% dos envolvidos são ligados politicamente e são aliados do governo. Qual é a base de sustentação do governo? Não é PT, PMDB, PP? Então, a presidente tem uma base ruim, que está, em tese, comprometida com acontecimento que abalam a opinião publica. Isso a enfraquece muito.

O que isso significa efetivamente?
A presidente é uma pessoa séria, competente, não teve liderança política por enquanto, e isso não é demérito para ninguém, porque liderança não é uma coisa que se conquista, é quase uma coisa nata. Ela não teve liderança sobre o seu governo e sua base parlamentar de apoio. A gente sabe que, num momento em que fosse possível que a presidente pudesse dar uma orientação sua, pessoal, no mandato, ela poderia levar seu mandato com certa tranquilidade. Mas ela está envolta numa base de sustentação que a impede de governar como ela gostaria. 

O melhor seria uma renúncia?
Veja bem, a crise política por si só não é motivo para afastar. As dificuldades vão ocorrer com ou sem impeachment. O Brasil está fadado nos próximos anos a ter uma situação como essa, talvez um pouquinho melhor, pois os ânimos estão muito acirrados. Está faltando sim legitimação política para governar. O que não quer dizer que não haja legitimação constitucional e legal. Isso está prejudicando o Brasil, o país parou. As forças econômicas e sociais estão desgastadas. Os próprios movimentos sociais, de sustentação, em tese, do governo, fazem uma sustentação parcial ,porque são contra a política social que está sendo implementada. Não posso dizer que a renúncia resolveria, seria injusto dizer isso. Nem que o afastamento dela resolvesse todo e qualquer problema. Mas a situação é grave e não há competência, discernimento, do Executivo e do Congresso em pelo menos ter o mínimo de composição para o governo funcionar. Isso desencadeia uma crise que já está e vai ser maior.

Qual o peso da sociedade nesse imbróglio político? Manifestações podem interferir no processo?
Sempre. A manifestação das ruas, popular, dos cidadãos, dos segmentos sociais, das organizações não-governamentais influi decisivamente. E a Câmara e o Senado são compostos de representantes do povo, dependem do voto. Suas atitudes estão sob o crivo da crítica da população.

Por isso o governo tem pressa?

Sinceramente não sei o que é melhor ou pior para o governo. Não sei se o governo realmente quer isso. Porque pior do que hoje não vai dar. E melhor também não acredito. Essa é crise vai ser prolongar por algum tempo. Isso vem ainda do rescaldo do resultado das eleições, porque a presidente fez uma campanha cujo programa ela não pôde cumprir, ou descumpriu, posteriormente, mas que foi legitimado pelo voto da maioria.

Mais ainda depois da Lava-Jato?
Não tanto, porque já se vem falando que o programa de governo, político, não foi cumprido, e pelo contrário, está sendo descumprido. A operação é, talvez, a mola propulsora dessa crise, e não é só a Lava-Jato, mas a operação é a forma mais escancarada de revelar uma face do Congresso, do Executivo, uma face empresarial que não depõe efetivamente a favor do governo nesse momento. Não estou aqui julgando ou apontando esse ou aquele envolvido. Mas o componente político está se revelando em acontecimentos, que podem ter existido potencialmente, no governo da atual presidente, como no do anterior, no presidente Lula por duas candidaturas. E isso causa revolta na população sim, porque está se vendo que a corrupção no Brasil está deixando aquele grau de impunidade, que é diferençável da corrupção existente em todos os outros países, que não tem um grau de corrupção tão alto quanto aqui. E nesse aspecto, cada envolvimento, cada prova, trazem elementos que não são absolutamente favoráveis nem ao Congresso nem ao governo, principalmente ao governo.

O senhor se manifestou em um parecer pedindo anulação da delação do Youssef?
Não pedi nada. Perguntaram e respondi de maneira intuitiva. E me foi perguntado: “É possível que um delator, que quer um acordo de delação premiada fazer outro? O senhor faria um parecer sobre isso?” E disse: “Calma. Disse intuitivamente”. Vou estudar, tenho isso escrito no e-book, há mais de um ano. Tudo o que disse no parecer não é novidade, está escrito. O que me perguntaram é se um delator depois de quebrar um acordo, sete dias depois, pode fazer um novo acordo de delação premiada. E disse que não no parecer, e continuo dizendo que não. O STF disse uma série de premissas sobre a delação premiada, e acabou sim, por dizer, que é possível sim uma nova delação, porque beneficia tão somente na sua quebra, na sua manutenção, ao delator. Eles têm benefícios na sua execução, na gradação de sua pena. A lei é omissa porque jamais passou pela cabeça do relator, do legislador, que numa lei penal fosse possível uma nova delação com uma quebra escancarada como houve. 


Isso compromete a operação?
Fiz um parecer técnico e entreguei para um escritório, não fui que propus o habeas corpus. O parecer está disponível e foi entregue para um escritório, que encomendou o parecer e que poderia usar da forma que usasse, da maneira adequada. Tenho certeza que a delação premiada é um dos elementos mais essenciais de obtenção de provas e de crimes complexos.

Tem sido usada de maneira correta?
Aí são outros quinhentos. Ela só serve para crimes complexos. É para crimes graves, complexos. Tanto que é praticado por organizações criminosas, com quatro ou mais pessoas, que tendo uma hierarquia, certo interesse comum, que pratica atos ilícitos em seu próprio proveito. Isso não vale só para o tráfico, contrabando ou tráfico de pessoas, e vale também para crimes na administração pública. E outra questão, se isso se configura numa organização criminosa, tal como a lei dita. Mas a delação premiada é um método para obtenção de elementos de prova, ela não é prova por si só. Ela não se sustenta nem para abrir uma denúncia, nem para o início de uma acusação. Ela indica meios de que a investigação, que até então não tinha sido feita: “Vá lá e confirme se aquilo existe”. E para isso é essencial um processo penal. A lei é nova, de 2013, está sendo aplicada num momento inédito no Brasil, em que os mesmos fatos, com as mesmas pessoas envolvidas, ou seja, os mesmos delitos estão sendo julgados ou apreciados em decisões intermediárias concomitantemente pelo STF e pelo juiz de crime penal. Isso é inédito no Brasil. O que me preocupa na delação é o tempo, a delação feita para pessoas que estão presas preventivamente e por um tempo que não sei se é necessário, porque a prisão preventiva tem limite, para manutenção da ordem pública, econômica, a investigação de um processo e a efetiva aplicação da lei penal.

Nesse caso há um exagero?
A delação tem de ser voluntária, tem que ser dentro de uma normalidade processual, e pode ser feita com o acusado preso ou solto. O que me preocupa é a delação ser feita com os presos preventivamente por um tempo maior que o imaginável, sem elementos concretos.

O que acha do juiz Sérgio Moro?
Ele tem coragem e competência. Dei posse a ele. Fui o relator da criação das varas especializadas, em processamento de crimes de lavagem de dinheiro e crimes financeiros em organizações criminosas. Por que especializamos? Porque vimos que aqueles processos que tramitavam eram complexos, dependiam de uma especialização. Aliás, a especialização é o caminho da Justiça. A de Curitiba foi eu que instalei, em 2002 ou 2003. Os processos mais contundentes de interesse da União foram para essas varas, e elas começaram a funcionar bem porque ao mesmo tempo em que se especializou o juiz, se especializou o Ministério Público, a polícia, a Receita e o próprio advogado. E tivemos efetividade nos processos, por gente que conhece. Mas aí surge, em decorrência disso, a política interna do Judiciário, se dá muito holofote para algumas pessoas. Hoje é o Sérgio, ontem foi o Fausto de Sanctis, integrante da primeira equipe.

Esse holofote é importante num momento desses?
A decisão do Sérgio é competente e corajosa, não sei até onde vai ser mantida. Mas as decisões até agora envolveram todo o Judiciário, o TRF, o STJ e o STF. A decisão dele foi mantida, consequente não é uma decisão isolada, foi praticada lá. Houve um complexo da ordem judicial que a manteve. É importante porque é a primeira vez que se tem um processo dessa magnitude, que tem efetividade. As pessoas estão sendo processadas, e até mesmo presas, uma coisa inimaginável, pessoas de alto poder aquisitivo, diretor de empresas, senadores. Isso é avanço, não quer dizer que essas decisões, amanhã ou depois tenham um caráter condenatório. Mas figura emblemática do juiz é natural de se ocorrer porque é uma necessidade da população saber que há efetividade na Justiça, que não é mais para pobre e preto.

O Brasil está mudando?
A população em geral tem a consciência que uma única resposta penal possível é a pena de prisão. Todas as outras penas, multa indenizatória, alternativas, não são consideradas penalidades. A opinião pública já está muito satisfeita, e que prisões já existiram, a opinião pública já está saciada, no bom sentido, de efetividade da Justiça com as prisões e os processos em andamento. Essas prisões já estão sendo relaxadas, muitas delas vão ser relaxadas, mesmo as medidas cautelares e alternativas, e o STF e o STJ já estão caminhando para uma aplicação, digamos assim, uma interpretação diversa da mesma lei penal em relação a esses envolvidos. 

Quais os males do Judiciário?
Primeiro, a excessiva judicialização de processos no Brasil. Tudo se resolve na Justiça, o excesso de processos é a causa da demora, que é fatal para o conceito de qualquer instituição que tenha que apresentar uma decisão. Esse excesso faz com que o juiz seja empurrado a proferir decisões rápidas, as vezes não tão boas, e não quero dizer sofisticadas e elaboradas. E Judiciário também não é, se bem que em grau muito menor, imune à corrupção. Pontual, mas que existe. Há a distorção do número de processos, por exemplo, nos colegiados. Não sabemos dos agravos, dos embargos, como vão para o colegiado, com listas de 300 processos. Quem vai ter tempo de examinar se está se decidindo corretamente? Essa distorção está ocorrendo. Mas a Justiça está funcionando. Poderia funcionar melhor. O STF, por sua vez, precisa ser uma corte eminentemente constitucional e não ser uma corte criminal, inclusive, não de recurso, de processamento, de julgamento, que tem métodos alternativos para solucionar os conflitos. Nada pode ser obstaculizado ao exame do Judiciário.

O CNJ era mais atuante?
O CNJ teve uma atuação marcante nos concursos público para cartórios, os de registro de imóveis, acho que tem mais de 15 mil decisões, com uma equipe razoável. O sistema prisional, regulamentação de nepotismo, enfim, o CNJ teve mais presença. Talvez ele fosse mais afirmativo quando foi criado, teve aquele impulso porque decorreu da emenda 45, mas ainda era um órgão em criação, em evolução. Com a ministra Ellen Gracie, ele estabilizou. Com o ministro Gilmar Mendes teve um pico, até perante a opinião pública. A corregedoria conseguiu fazer audiências públicas e inspeção em todos tribunais de Justiça até militares do Brasil. Estou falando do CNJ como um todo, não individualmente. Hoje, pela sua compulsão, pelas suas atitudes, o CNJ está num momento, não vou dizer de paralisação, mas a sua efetividade, sua presença não é tão constante. 

Isso é um retrocesso, ministro?
Acho que sim. Talvez sejam etapas do processo em que talvez não sejam mais necessárias esse estrépito todo, mas ali foi um despertar de que o CNJ tinha competência correcional. E, vejam bem, o aspecto de punição, de apuração de responsabilidade é apenas um ponto do CNJ na corregedoria. Mas essas inspeções, e resoluções dizem respeito a tudo que um tribunal fazia. Significava o número de servidores, de concursados, de cargos comissionados, de decisões proferidas pelo desembargador, se o orçamento estava sendo aplicado. Tudo isso é da competência do CNJ. Não é que os juízes devam temer o CNJ. Mas hoje a sensação é que o CNJ, como órgão de controle administrativo, financeiro e disciplinar, do funcionamento dos tribunais, não é mais a mesmo. E os problemas de corrupção continuam, principalmente em alguns tribunais.

A decisão do TCU sobre as pedaladas não constitui um fundamento jurídico para o impeachment?
A fundamentação jurídica para o impeachment é a da lei de 1950, para os chamados crimes de responsabilidade. Tenho dúvidas se as chamadas pedaladas se enquadram naqueles tipos descritos ali. Mas o Tribunal de Contas não é um tribunal jurisdicional. É um órgão da administração que apura contas, formado por um corpo técnico de alta qualificação e por ministros – que não são ministros do Judiciário, têm apenas as mesmas prerrogativas dos ministros do STJ – e que tem o dever de apreciar de forma objetiva essas contas. É como se fosse uma perícia técnica. Trata-se de órgão auxiliar do poder legislativo, cuja decisão não precisaria ter esse estrépito que teve. A meu ver, esse tipo de decisão do TCU, se for referendada pela Câmara, precisa estar em total harmonia com os ditames constitucionais. Decisão de TCU, em princípio, não configura responsabilidade para tirar um governo constituído. Pode ser que em algum tempo isso venha a se afirmar por outras razões, ou por razões que excedam o mero exame de contas.

Um governante que desrespeita a Lei de Responsabilidade Fiscal não seria suficiente?
Em tese, sim. Mas isso ocorreria pela Lei de Responsabilidade Fiscal, e não pela lei do impeachment. Uma das penalidades previstas, nesses casos, é o governante se tornar inelegível. As transgressões cometidas por quem não cumpre a LRF, a lei de licitações, lei da transparência podem gerar punições que não são as mesmas de um impeachment. O impeachment não é um processo licitatório, não é um processo de prestações de contas. É um processo político e jurídico. E mais político, porque quem decide é o Senado. Apenas é presidido pelo presidente do STF. Tanto que o Collor foi condenado no Senado e absolvido na órbita jurisdicional. Não é preciso ter prova concreta, desde que haja evidências e motivações de ordem política, que podem ser meramente reflexo da insatisfação popular, da falta de sustentação do governo, da falta de credibilidade no exercício das funções para resolução dos problemas mais graves da economia e da política nacional.

Já viu um momento tão crítico?
Nunca. Nem eu nem ninguém da minha geração, passada ou futura. O momento de crise da sociedade, de descrédito das instituições, dos políticos, do Congresso, o caos na economia, a falta de sensibilidade... nem no regime militar. No regime militar, mesmo com a violação inegável de direitos humanos fundamentais, havia um suporte de organização, de economia, de apoio político, que não causou esse grau de insatisfação. Houve outro tipo de grau de insatisfação, que foram as restrições às liberdades individuais, dos mortos na tortura – e posso dizer isso porque fui coordenador da Comissão Nacional da Verdade. Mas esse grau de degradação da política como um todo, do regime republicano e democrático, nunca vi.

É preciso cobrar ainda mais responsabilidade dos atores?
Não tenho dúvida. Os atores não podem se demitir de suas obrigações. E não podem transferir seus deveres e obrigações para os outros. Porque aí o caos está instituído.

É o que está acontecendo agora?
Em relação ao STF, o Congresso está resolvendo seus problemas internos, regimentais, disputas políticas acionando o Judiciário, que tem de se manifestar apenas em relação à Constituição. O Executivo e o Legislativo estão se demitindo de suas funções para passar o bastão ao STF. O Judiciário tem de ser comedido. Ele só pode se manifestar, mesmo que provocado, naquilo que for de índole constitucional, e não de processo legislativo, de aspectos que estão reservados à lei ordinária ou aos regimentos internos dos órgãos.

Ficou satisfeito com o trabalho da Comissão Nacional da Verdade?
Fiquei quatro meses na coordenação, fiquei doente e não voltei – apesar de nunca ter sido substituído. A Comissão da Verdade, depois que saí, passou a ser integrada por seis membros. Os quatro meses iniciais foram de implantação, de verificação até onde e de que modo ela poderia chegar a alguma conclusão. A comissão tinha restrições da lei – não podia ter aspecto jurisdicional punitivo e persecutório, e sim apenas de reavivar a memória histórica, etc. Enquanto estive, não havia nenhuma colaboração das Forças Armadas, apesar de termos várias reuniões com ministros da Defesa. Todos solícitos, educados, mandavam documentos ou diziam que documentos não mais existiam – o que é muito duvidoso, porque não há burocracia mais organizada do que nas Forças Armadas. No final, a comissão chegou àquilo que era possível, principalmente porque o relatório final da comissão foi entregue em um momento que não era propício.

Por quê?
Foi entregue no final de 2014. Ano eleitoral, período pós-eleições. Quem tem interesse que um relatório traga algumas verdades outras do que aquelas que foram ditas? Não que as Forças Armadas fossem fazer alguma coisa. O Exército de hoje não tem nada a ver com o Exército de ontem. O que os chefes das Forças Armadas fazem hoje, erradamente no meu entender, é preservar o histórico da instituição. É um corporativismo de preservação do prestígio das Forças Armadas, mas ninguém pensa como pensava no tempo da ditadura. O único fato concreto que tivemos nos poucos meses que estive na Comissão foi a modificação da certidão de óbito do Vladimir Herzog.

Essa página foi virada?
A Comissão da Verdade fez um belo trabalho, indicou os torturadores. Mas há um caminho pela frente que precisa ser cumprido. A Lei de Anistia não pode perseverar. Estive na Comissão de Direitos Humanos da OEA em que o Brasil foi condenado por violar direitos humanos com base na Lei da Anistia. Nosso sistema constitucional parece que não está inserido num complexo internacional. O velho e antiquado princípio da soberania nacional não dá valor aos acordos internacionais. O futuro são as legislações internacionais.

Qual crítica o senhor faz ao MP em relação à Lava-Jato?
O Ministério Público está fazendo um belíssimo trabalho de investigação, mas no que concerne os pedidos de prisão preventiva e prorrogação de prisão preventiva, está extrapolando as suas funções. Tem que ter limites, que é o devido processo legal. Essa cruzada contra a corrupção, pregada com coletas de assinatura, não é papel do Ministério Público. Isso inclusive está imiscuindo-se nos acordos de leniência das empresas, que não têm nada a ver com o aspecto penal. Hoje a CGU e a AGU estão submetidas à vontade do MP no que concerne o acordo de leniência.

Isso é um risco?
Sim porque tudo está sendo feito em cima do fato concreto, em cima de um momento danoso, que é a operação Lava-Jato. A regulamentação da Lei anticorrupção e as várias tentativas de modificação da lei, o compliance, os programas de integridade estão sendo feitos como se fossem para a Operação Lava-Jato. Essa é uma lei nacional, pune qualquer pessoa, física e jurídica, contra ilícitos praticados contra a administração pública federal, nos estados e municípios e nos Três Poderes. Uma licitação que tenha sido fraudada na Câmara ou no STJ, a lei não está prevendo isso. Vai agora o MP se envolver num processo administrativo disciplinar? Estamos desprestigiando todos os órgãos da administração pelos fatos da Lava-Jato. Como se a CGU ou qualquer ministro não tivesse autoridade e isenção para tocar um processo administrativo.

Qual a conclusão, afinal, da Lava-Jato?
Vivemos um momento no Brasil em que tudo está voltado para a Lava-Jato. Ela é um grande avanço, mas não é ela que vai nortear o futuro do Brasil. O país tem instituições e as leis têm que ser previstas nacionalmente e não episodicamente. A Lei Anticorrupção começou a vigorar em um momento inoportuno, pois parece que foi feita única exclusivamente para a Lava-Jato. Nesse momento, a AGU e a CGU estão cedendo um espaço que institucionalmente que lhes é próprio para atores que, neste tipo de processo são indesejados, como o TCU e o Ministério Público, que não são donos da verdade.

Até pouco tempo atrás a CGU estava com o risco de perder o status de ministério.
Sim, como se fosse algo que não fosse importante. A CGU fiscaliza 5.000 municípios, fiscaliza todas as verbas federais. Mesmo com um corpo técnico limitadíssimo, mas realiza as imensas tarefas que lhe foram atribuídas. E agora querem retirar este poder casuisticamente. E aí, quando se misturam as instituições e uma se submete a outra, o perigo da democracia da República é evidente. É preciso cautela e bom senso. E menos empáfia de alguns órgãos institucionais.

Na praia, com o irmão Hamilton, que também seguiu a carreira jurídica. É juiz do TRE/RS





Em um congresso de estudantes secundaristas, na capital gaúcha, onde voltou a estudar depois de passar uma temporada em Brasília
Ao lado dos colegas Teori Zavascki (D) e Ellen Gracie: amizade desde os tempos da faculdade de Direito

                          Com a filha e a esposa em Brasília, onde pretende ficar

“Estamos vivendo uma crise nos Três Poderes. Legislativo, Executivo e desembocando no Judiciário. Há uma falta de efetividade de compromisso”

“Virei a página”
Nasci em Passo Fundo (RS) e estou em Brasília há 19 anos. Eu estudei aqui em 1961 e 1962, no Elefante Branco. Meu pai era deputado federal pelo PTB. Depois, fiz faculdade em Porto Alegre. Fui advogado 20 anos antes de entrar na magistratura e nunca pensei ser juiz na vida, foi mero acaso. Eu era advogado e os tribunais regionais estavam sendo formados. Entraram como advogados, pela composição originária, Teori e eu e, pelo Ministério Público Federal, a Ellen Gracie. Em setembro de 2012, estava no STJ e no TSE, finalizava o trabalho da comissão do Código Penal e era da Comissão Nacional da Verdade. Então, caí doente. A cabeça estava bem, mas o corpo disse “basta”. Fui internado no Hospital das Forças Armadas, em Brasília, devido a uma crise de asma. Porém, a doença evoluiu para uma pneumonia e fui transferido para São Paulo, para o hospital Albert Einstein. Foram seis meses de hospital. Estava com a imunidade de uma criança de menos de 5 anos. Parecia uma mera pneumonia. Mas não sedia, não sedia. Tomei a medicação e identificaram que tinha uma bactéria no intestino. Foram examinar e apareceu uma perfuração no meu intestino. Eu morri e voltei. Se alguém não acredita em nada, hoje eu sei que não foi por acaso. Tenho certeza disso. Foram dois meses entubado, tive que reaprender a engolir. Hoje, recuperado, bebo cerveja, tomo cachaça, como bem. Dou palestras, escrevo. Saí do tribunal e virei a página. Estou feliz.



Por: Ana Dubeux , Carlos Alexandre / , Leonardo Cavalcanti / - Fotos: Marcelo Ferreira/CB/D.A.Press - Correi Braziliense 

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