O futebol brasileiro sempre ocupou a vanguarda no mundo da bola,
provocando o encanto que tanto caracteriza os gênios desse esporte. E como a
vanguarda é irmã da arte, convencionou- se chamar de futebol arte aquilo que os
jogadores de amarelo apresentam em campo. O gol de Neymar, no qual aplica
lençol sobre o adversário, para depois arrematar a bola do outro lado antes que
ela tocasse o chão, é mais um exemplo. Um gol exatamente como esse, em especial
no momento em que faz girar o corpo, só poderia ter brotado na terra brasilis.
Aquilo é arte, é genial!
Logo se vê que o papel que se desenhou para o
futebol brasileiro não é simples. E mantê-lo tem se tornado tarefa cada vez mais
difícil. “Não existe mais bobo no futebol” é velho jargão cada vez mais atual,
e isso atingiu níveis globais. A globalização superou as fronteiras que
separavam as diferentes escolas e homogeneizou os estilos. Agora, não só os
bobos sumiram, mas há craques no mundo inteiro e suas jogadas de arte e efeito
podem ser vistas e revistas a qualquer momento.
Embora a arte no futebol não seja mais propriedade
exclusiva, ainda somos a seleção mais querida do mundo. Talvez porque aqui a
identidade do futebol tenha se construído mais como jogo do que como esporte, e
o jogador é figura diferente da do atleta. O jogador brinca e se diverte.
Possui certa indisciplina a partir da qual pode improvisar e aí, livre e
lúdico, ser tomado pelo devir do drible, pela poética que nos faz gênios da
bola. Mas um paradoxo se abre no centro da pergunta sobre qual é o papel do
Brasil no futebol: a identidade tão admirada perde espaço em esporte que se
preocupa cada vez mais com o resultado, o vigor físico, a posse de bola e a
disciplina tática. O belo da inspiração poética do jogador artista
transformou-se no belo da disciplinada transpiração do atleta.
É de se perguntar se esse jogador — que em seu
jogar relembra a liberdade das brincadeiras de infância nos tempos do futebol
de praia, onde até mesmo os limites do campo se faziam mutáveis conforme a maré
— ainda tem lugar no mundo do esporte de alto rendimento. No centro desse
paradoxo, o Brasil precisa se reencontrar, redescobrir o seu papel dentro do
cenário mundial. As pessoas têm chamado esse processo necessário de
modernização e apontam as gestões temerárias como o principal fator de risco às
virtudes do futebol brasileiro. Em evidente reativação do complexo de
vira-lata, apontam para a Europa e acreditam que ali estão os modelos a serem
seguidos. Mas a resposta não é tão simples.
A modernização do futebol brasileiro, dentro e fora
de campo, deve seguir seu próprio modelo e nesse ponto a nova gestão da CBF
quer se tornar a referência, com compliance, transparência e democratização.
Vem valorizando o diálogo, escutando os clubes na perspectiva da construção
coletiva do futebol. E, em campo, devemos potencializar o que no Brasil permite
formação diferenciada de seus jogadores. Será preciso criatividade para
construir novas para o devir do futebol brasileiro fluir. A ludicidade e a
poesia devem poder se encontrar com a disciplina tática, física e o jogo
coletivo. A anteposição paradoxal entre esses fatores se dilui nos pés de
Neymar e da nova seleção que vem sendo construída: a síntese é possível.
Mas, para essa síntese se tornar cada vez mais real
nos pés de novos talentos, é preciso auscultar com atenção os chamados de um
tempo de crise e perceber que a própria relação do brasileiro com o futebol
está mudando. Antes o jogo acontecia em todo e qualquer lugar. Na crise do
futebol, em sua dimensão cultural, elementos fundamentais como o prazer e a
diversão acabaram perdendo espaço para produtos esterilizados. Além disso, o
medo, a violência, o abuso de drogas, a desocupação de espaços públicos vêm minando
cada vez mais nosso futebol popular. Por que antes crianças irem à praia sem
dinheiro era tido como um sinal de que jogariam futebol e hoje é visto como
sinal de arrastão? Desde quando, para muitas, o smartphone é mais importante
que a bola? Mas aí a pergunta já se torna outra, tão ou mais importante do que
a posta no título: hoje, qual é o papel do futebol no Brasil?
Por: Walter Feldman - Secretário-geral da
Confederação Brasileira de Futebol (CBF) – Foto/Ilustração: Blog – Google – Fonte Correio Braziliense