Os ciclistas Abraão Azevedo (E) e Christian Montalvão disputam espaço
com carros no Lago Sul e reclamam da falta de respeito
O Correio acompanha dois ciclistas em treinamento e flagra diversas
situações de risco e desrespeito de motoristas
Quem se arrisca a deixar o carro na garagem para usar uma bicicleta,
apesar de evitar a poluição e desafogar o trânsito, não costuma contar com a
compreensão dos motoristas do DF. Pior do que isso, é obrigado a conviver com a
pressa e a agressividade de quem disputa espaço, sem considerar que se trata de
um veículo desprotegido e até 130 vezes mais leve. Embora seja uma cidade
propícia para pedalar, por ser plana e asfaltada, a parca e mal planejada malha
cicloviária da capital é outro aspecto que prejudica os que buscam alternativa
aos automóveis. Na semana passada, o Correio acompanhou o treinamento de Abraão
Azevedo, um dos maiores especialistas em mountain bike do mundo, e flagrou o
desrespeito e as dificuldades nas vias de Brasília.
Apesar de
ser multicampeão nas competições em trilhas e nas estradas de chão batido,
metade do treinamento de Abraão ocorre no asfalto. Percorrendo as pistas do DF
há mais de 25 anos, os problemas com os carros nunca passaram do susto de quase
se acidentar (leia Memória). Muitos amigos dele, no entanto, não tiveram a
mesma sorte. E ele não precisa ir longe para lembrar atropelamentos de colegas.
Há menos de um mês, ao treinar com um grupo, um condutor ignorou a presença das
bikes e virou à direita sem dar sinal. Acertou um ciclista e sequer prestou
socorro: continuou no carro com as janelas fechadas e o ar-condicionado ligado.
Além do perigo, as vítimas amargam prejuízos materiais. Todo o equipamento de
Abraão passa dos R$ 30 mil, preço de um carro popular.
Os
índices melhoraram nos últimos anos, mas ainda são de deixar receoso quem pensa
em trocar o carro pela bicicleta: praticamente dois ciclistas morrem por mês no
trânsito da capital federal. No treino de 30km em que a reportagem acompanhou
Abraão e um amigo, o comerciante Christian Montalvão, as situações de risco
assustaram o experiente atleta. Os percalços são recorrentes até no trajeto
considerado mais seguro de todo o DF: no Lago Sul, saindo da QI 23, passando
pela pista principal do bairro e seguindo no sentido Altiplano Leste, de volta
para a QI 23.
No
primeiro quilômetro, um coletivo invade a ciclofaixa para cortar caminho na
curva. Em seguida, a pista exclusiva para os ciclistas acaba repentinamente e
dá lugar a uma parada de ônibus. Enquanto pedala, Abraão tem de soltar uma das
mãos do guidão para sinalizar que entrará na pista a fim de ultrapassar o
ônibus que embarca e desembarca passageiros à frente. Os carros obedecem e
diminuem a velocidade, mas não escondem a insatisfação. “Não somos reconhecidos
nem respeitados como um veículo que faz parte do trânsito. Muitos motoristas se
aproximam e encostam na gente para ganhar espaço, como se fosse normal”, relata
Abraão.
Os atletas usam os braços e as mãos com frequência para evitar colisões
com os veículos maiores. Também deixam de pedalar lado a lado em alguns trechos
para ocupar menos espaço na pista
Estratégia
Após descer a Estrada Parque Dom Bosco, na altura da QI 23, a dupla
chega à via principal do Lago Sul, onde a ciclovia não ajuda. A via reservada
para os veículos sem motor é interrompida a cada quilômetro, seja pelas paradas
de ônibus, seja pelas entradas das quadras, seja pelas pontes internas no
bairro. Para seguir o caminho, em diversos momentos, é inevitável dividir a
pista com os carros, o que torna o percurso ainda mais perigoso. “Sem falar dos
buracos na rua. Isso é um remendo, apenas pintaram o acostamento e deram outro
nome”, reclama Christian.
Em um cruzamento, o sinal fecha, e os ciclistas não têm lugar para
seguir. A ciclofaixa, naquele trecho, torna-se uma parada de ônibus. Nas outras
duas vias, um carro e um caminhão impedem a passagem. O jeito é parar e
esperar. Na sequência, os ciclistas pegam a DF-001, na subida dos condomínios
do Lago Sul, rumo ao Altiplano Leste. O risco aumenta. Ali, não há ciclofaixa,
e a pista de apenas uma mão e sem acostamento torna inevitável o desrespeito à
lei do trânsito de manter uma distância segura de 1,5m dos ciclistas.
Abraão e
Christian, acostumados a pedalar lado a lado, mudam a estratégia e passam a
andar um à frente do outro a fim de ocupar menos espaço. “Isso tudo aconteceu,
não podemos esquecer, no lugar em que talvez seja o mais seguro para pedalar de
Brasília”, lembrou Abraão, ao completar o percurso. No meio do caminho, eles
encontraram alguns amigos que treinavam no mesmo trajeto. “Eles tinham vindo do
Gama. Nas cidades mais afastadas, é muito pior”, lamenta o atleta.
"Não somos reconhecidos nem respeitados como um veículo que faz
parte do trânsito. Muitos motoristas se aproximam e encostam na gente para
ganhar espaço, como se fosse normal”
(Abraão
Azevedo, ciclista)
O
que diz a lei
O Código de Trânsito Brasileiro determina que, quando não houver
ciclovia, ciclofaixa, ou acostamento, a circulação de bicicletas deverá ocorrer
nas vias urbanas. Quando não for possível utilizar a ciclovia ou o acostamento,
o ciclista poderá usar a pista de rolamento, no mesmo sentido de circulação
regulamentado para a via, com preferência sobre os veículos automotores. A
legislação também estabelece que a autoridade de trânsito poderá autorizar a
circulação de bicicletas no sentido contrário ao fluxo dos veículos
automotores, desde que dotado o trecho com ciclofaixa.
Memória
- Acidente e ameaça
No ano passado, uma ciclista teve duas fraturas no maxilar quando
pedalava com uma turma. Ela alega que um médico mastologista teria jogado o
carro na frente do grupo, causando um acidente. Houve uma série de protestos à
época. Em janeiro, um pelotão treinava no Lago Sul numa manhã de domingo,
quando, depois de um desentendimento, um motorista emparelhou o carro com as
bicicletas e começou uma perseguição. Um ciclista filmava o treinamento e
gravou o momento em que ele desceu do automóvel e sacou um revólver a fim de
ameaçar o grupo. O condutor era um cabo da PM.
Cartilha e recomendações
Multicampeão em mountainbike, Abraão Azevedo pedala de 500km a 600km por
semana, sendo metade disso no asfalto. Ele tem 45 anos e faz uma análise
histórica da bicicleta na capital: “O boom de carros nos últimos 10 anos
agravou a situação. Até o início dos anos 2000, Brasília tinha um trânsito mais
tranquilo e seguro”, avalia. Christian, 43, concorda. “Em 2003, eram
emplacados, em média, 7 mil carros no DF por ano. Anos atrás, esse número
chegou a 12 mil. O governo deu muito incentivo para a população comprar carros
e nunca deu atenção às ciclofaixas”, queixa-se.
Apesar de
condenar o comportamento de muitos motoristas, Christian lembra que os
ciclistas também têm de obedecer as regras. “Um erro não justifica o outro. Às
vezes, por exemplo, vejo gente pedalando no contrafluxo dos carros, o que é
muito perigoso e desrespeita as regras”, diz.
A ONG
Rodas da Paz tem cartilhas para estimular a educação no trânsito. Em reunião
com o Departamento de Trânsito (Detran) neste ano, a instituição fez
recomendações ao órgão. “É preciso reforçar para os motoristas, e a população
em geral, sobre a conduta correta em relação aos ciclistas. Temos direito de
usar a via e devemos ser respeitados, mesmo quando houver ciclovia, A
preferência em cruzamentos rodocicloviários é da bicicleta, de modo que os
condutores devem oferecer a preferência nas travessias. Também recomenda-se
fortemente sugerir que motoristas mudem de faixa para ultrapassar uma bicicleta
no trânsito”, sugere o texto entregue ao governo.
Fonte: Matheus
Teixeira – Fotos: Minervino Junior/CB/D.A.Press – Correio Braziliense