"A Lei Maria da Penha é completa, prevê tudo,
foi muito minudente no combate. A dificuldade é nossa, dos operadores do
Direito. Ponho a responsabilidade em nós, juízes, promotores, advogados. Porque
existem alguns procedimentos na sala de audiência que não evoluíram. A maior
crítica que eu faço é uma falta de rotina para as varas, nos juizados de
violência doméstica."
Por que é tão difícil para a mulher romper o ciclo de violência?
Quem trabalha com violência doméstica não pode ter preconceitos. Há
vários casos em que a mulher insiste em permanecer num ambiente de violência,
eu diria até que é a grande maioria. Elas não podem ser julgadas por isso. A
gente sabe por que permanecem. Por dificuldades financeiras, porque estão muito
fragilizadas para romper aquela relação, por falta de uma rede de apoio, de
família e amigos. Há vários casos em que elas são sozinhas, não têm para onde
ir. Muitas acham que ele vai mudar. É difícil romper esse ciclo. É necessário
um trabalho de emponderamento da mulher, de tratamento. O Judiciário precisa de
uma equipe multidisciplinar. Às vezes, elas querem revogação da medida
protetiva porque recebem ameaça do marido ou da família dele. Como juíza, não
posso ouvir isso e não fazer nada. Não posso fazer isso moralmente. Eu preciso
resolver. Elas não saem daqui sem resposta. Preciso pedir alimentos, inseri-las
nos programas sociais etc. A parte complicada é que o Judiciário precisa fazer
um papel social que compete ao Estado. Um grande parceiro é o Provid (programa
da PM que atua diretamente com as vítimas que têm medidas protetivas). Eles os
anjos da guarda das mulheres.
Por isso a senhora decidiu fazer a Ação Solidária Rompendo o Silêncio (no
sábado passado, reunindo palestrantes que explicaram os direitos
femininos, na Fercal)?
O juiz que trabalha com violência doméstica tem de sair do gabinete. Eu
não tenho condições de trabalhar só com números, processos e estatísticas. Eu
poderia falar: ‘Tenho tantos processos, tantas audiências por dia, minha vara
está em dia’. Mas isso não basta. Tem que levar a lei para fora, esclarecer.
Temos de usar o Poder Judiciário para levar informação até essas
mulheres.Violência doméstica, ou você ama ou odeia. E eu sou apaixonada pelo
tema.
Ao longo dos anos, percebe-se algum tipo de evolução? A
mulher denuncia mais? Os homens agridem menos?
Acho que
existe uma maior conscientização. A Lei Maria da Penha é completa, prevê tudo,
foi muito minudente no combate à violência. A dificuldade é nossa, dos
operadores do direito. Ponho a responsabilidade em nós, juízes, promotores,
advogados. Porque existem alguns procedimentos na sala de audiência que não
evoluíram. A maior crítica que eu faço é a falta de rotina única para as varas,
nos juizados de violência doméstica. Isso gera insegurança jurídica e desigualdade
para a vítima e para o ofensor. Eu atuo na vara de um jeito, mas outro colega e
outro juiz de outra vara atuam de outra forma, ou de outro estado. Já teve caso
de ligar para outro estado e informarem que lá não se aplicava medida
protetiva, que mandavam a vítima sair do estado. A lei tem quase 10 anos e
ainda há uma dificuldade de estabelecer essa rotina. Aqui mesmo no DF tem
tratamentos diferentes. O juizado não poderia agir de acordo com a opinião de
cada magistrado e de cada membro do Ministério Público.
A senhora sente o machismo dentro da sala de audiência?
Como
magistrada, mulher, conduzir uma audiência de violência doméstica é difícil.
Eles me olham pensando que eu sou mulher igual àquela que ele bate. Já tive
caso de um que fez um gesto obsceno quando saiu de uma sala de audiência. Eu o
mandei voltar, ele foi conduzido à delegacia e respondeu por desacato. Na
delegacia, ele disse que não fez o gesto para a juíza, que fez para a Lei Maria
da Penha. Eles dizem: ‘Eu não sou bandido, eu nunca roubei, nunca matei, nunca
furtei’. E eu digo: ‘Mas o senhor bateu na sua esposa’. E ele responde: ‘Mas
ela é minha esposa’.
Os agressores se arrependem?
Muito
pouco. Normalmente, eles negam, falam que revidaram a uma agressão. Num caso
específico, eu perguntei qual o tamanho da esposa. 1,50m. E o dele? 1,80m. Como
uma mulher de 1,50m vai dar uma surra em alguém de 1,80m? Eles não admitem
estarem sendo processados por um crime de violência doméstica. Ou dizem que não
se lembram por causa do álcool ou do entorpecente. O álcool é um fator de risco
importante para a violência doméstica, mas não é atenuante. Não justifica.
A maior parte dos processos da vara é de homens que agridem
mulheres?
É
engraçado. Às vezes, há colegas que dizem: ‘Ah, mas só falam de violência
contra a mulher? E quando é a mulher que agride?’ Eu digo que temos de
trabalhar com a maioria. E a maioria absoluta é essa. Há todo tipo de caso:
abuso de crianças, violência contra idosos, há também casais homossexuais
mulheres, que uma bate na outra; e contra transsexuais. Mas 90% dos casos são
de marido ou namorado ou ex contra as mulheres.
Os ecos de uma brutalidade crônica
Uma sala de audiências não é apenas um
lugar onde se julga. Nela, reverberam preconceito, culpa, medo, machismo. É um
espaço no qual se compreende o quão complexo e delicado é, para a mulher, o ato
de denunciar o agressor
Anexo da sala de audiências do Juizado de Violência
Doméstica, em Sobradinho: mulheres agredidas podem deixar os filhos na
brinquedoteca
O silêncio é o segundo castigo da mulher que
apanha. Frequentemente, quando e enquanto pode, ela se cala. Esconde da
família, dos amigos, dos vizinhos, dos filhos. Por vergonha e por uma condição
cultural, presente há tanto tempo que lhe soa instintiva e natural: é preciso
ser forte. Também por culpa. Não quer causar sofrimento àquele que um dia foi
seu companheiro. Não quer que os filhos vejam o pai preso. Afinal, o álcool e
as drogas o transformaram, ou foi o desemprego, ou foi o ciúmes. Mesmo sem ter
plena consciência disso, elas procuram justificar a agressão que sofrem.
Só quando
o martírio e o pavor tornam-se insuportáveis, ou quando alguém chama a polícia,
as mulheres costumam decidir pela denúncia. Ao romper a barreira do silêncio,
vencer o ambiente das delegacias e o medo da volta para casa, elas chegam às
salas de audiência das 19 varas de violência doméstica do Tribunal de Justiça
do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). Temerosas, nervosas, culpadas; às
vezes, arrependidas. Estão ali para requerer uma das medidas protetivas,
previstas na Lei Maria da Penha; também para pedir que a proteção seja
retirada; para iniciar um processo ou para conhecer o desfecho dele.
Acompanhamos
em dois dias algumas audiências realizadas na Vara de Violência Doméstica do
Fórum de Sobradinho, onde tramitam 2,7 mil processos. As causas julgadas são
variadas, de abuso sexual de crianças a maus-tratos de idosos. Mas, em 90% dos
casos, são réus os maridos que xingam, ameaçam e batem em suas companheiras ou
os ex-maridos que perseguem e não dão trégua para quem já desistiu de ser
infeliz ao lado deles. A juíza titular da Vara de Violência Doméstica, em
Sobradinho, Rejane Suxberger, é conhecida pelo rigor na aplicação da Lei Maria
da Penha. Mas não só por isso. Criou uma condição diferente para as mulheres
que entram em sua jurisdição. Dividiu o espaço de modo que, enquanto esperam,
elas não fiquem expostas aos agressores, nem aos parentes dele. Há uma sala
reservada onde aguardam. Enquanto isso, elas assistem a vídeos escolhidos por
psicólogos forenses, com esclarecimentos sobre seus direitos previstos em lei,
que incluem, sobretudo, proteção. Ali, é dado o primeiro passo rumo ao
empoderamento feminino: não desistir da denúncia, fato que não é raro.
Na sala,
há também, contíguo à sala de audiência, um espaço para que elas deixem os
filhos, uma minibrinquedoteca. “Muitas mulheres são ameaçadas até no trajeto à
sala de audiências. Por isso, criei esse modelo, que é pioneiro. Tentamos
passar para essa mulher antes de ela entrar. Elas carregam essa ideia de que
ele foi preso e processado por culpa delas. A responsabilidade não é delas,
aquela situação foi causada por eles. Um dos meios que existem de romper o
ciclo de violência é com a judicialização do processo”, explica, na quinta
reportagem da série “Quando não mata, fere”.Para que as mulheres fiquem mais à
vontade, a primeira atitude da doutora Rejane é apresentar à vítima todas as
pessoas presentes na sala. Ela precisa saber quem é quem. O grande desafio da
juíza e dos promotores é fazê-la entender que ali quem está em julgamento não é
ela. Quando sentam na mesa da sala de audiência, a maioria já imputou a si
própria, sem se dar conta disso, uma cruel sentença: não importa o que ele fez,
existe uma justificativa.
*Os nomes citados abaixo são fictícios
“Ele não soube lidar com o meu câncer”
Neide é uma senhora de cabelos bem arrumados, que aparenta ter uns 60
anos e boa instrução. Está ali para uma audiência de instrução do processo. O
acusado responde a uma ação penal por tê-la agredido em junho de 2014. Na
época, o marido a trancou em casa, xingou, puxou o cabelo, a empurrou. Não foi
a única vez. Foi denunciado por vizinhos, que chamaram a polícia. Os dois estão
separados e ele não chegou a incomodá-la mais. O casal viveu junto por cinco
anos. As brigas tornaram-se constantes quando ela descobriu um câncer. Ele
bebia, chegava em casa alterado, xingava-a de velha e outras “coisas
doídas” que ela prefere não repetir. Em tratamento, fragilizada pela
quimioterapia, com dores no local do catéter, suportou até o limite. “Ele
agredia num dia; no outro dia, pedia perdão. Eu ficava muito confusa porque,
sem a bebida, ele era maravilhoso. Trazia flores, perfume. Tentei que fizesse
tratamento. Não queria me separar, mas virou uma relação doentia.” Para Neide,
o então marido “teve dificuldade de lidar com o câncer dela”. Diante dos
argumentos de que estavam separados há quase um ano e ele não se aproximava
mais, a juíza retirou a medida protetiva.
“Acho que ele se arrependeu”
João tem
sorte. Poucos ali têm condições de ser acompanhados por dois advogados, um
deles contratado pelo patrão. Está preso há mais de dois meses. Por ameaçar e
perturbar diversas vezes a ex-mulher, e o atual namorado dela.
Desobedeceu à medida protetiva, insistiu nas ameaças e, por isso, a juíza
mandou prendê-lo. João não concordava com o fim do relacionamento de 20 anos.
Ligava para os filhos e questionava sobre a vida da ex. Chegou a importuná-la
16 vezes em um dia. Ela mudou três vezes de endereço. Certo dia, na saída da
igreja, ele passou de moto, e fez um gesto de ameaça. Foi para a porta da casa
dela e forçou o portão. “Vou matar vocês, desgraças”, referindo-se à ex e ao
namorado dela. Ela denunciou o descumprimento da medida protetiva. A juíza
mandou prendê-lo. Não havia sido a primeira vez. Certa vez, ele lhe deu um soco,
até hoje ela está sem o dente. Ele dormiu na cadeia e saiu. Os dois se
separaram, mas ele parou de beber, voltaram e a trégua durou cinco anos. Quando
voltou a beber, voltaram as agressões. Marta diz à juíza que não se opõe à
soltura dele, só não quer que ele chegue perto dela. Na sala ao lado, enquanto
aguarda o depoimento das testemunhas, ela confessa que o denunciou por medo,
mas tem pena do pai de seus três filhos. “A prisão foi um aprendizado. Ele não
acreditava que ignorância leva à cadeia. No fundo, ele tem algo bom no coração.
Está arrependido”, diz. João levou várias testemunhas, entre elas um primo da
ex-mulher, para atestar o bom comportamento. A juíza revoga a prisão. Mas não
sem advertências: “A vida da dona Marta não lhe interessa mais. Vocês não são
mais casados. Isso inclui mensagens no Facebook, mandar recados, perguntar por
ela aos filhos”. O promotor endossa: “O senhor está proibido de ter qualquer
contato. É solto hoje, mas pode ser preso de novo amanhã. O senhor entendeu?”
“Resolvemos tudo amigavelmente”
Rosa está ali para pedir retratação. Quer desistir de processar o
ex-marido por ameaça e lesão corporal. Ela descobriu que ele tinha uma amante.
Durante uma briga, ele a agrediu e ameaçou matá-la e aos filhos. “Estamos
separados, mas resolvemos tudo amigavelmente. Temos que ser amigos por causa
dos nossos filhos.” A juíza explica que não depende mais de sua vontade que ele
responda pela lesão corporal, e sim do Ministério Público. Quanto à ameaça, ela
pode desistir. Assim como pedir a revogação da medida protetiva. “Ele é um bom
pai, foi a primeira vez, estava de cabeça quente”, diz em defesa do ex-marido.
Também conta que venderam a casa e que ela deu a maior parte para ele, pois
está desempregado. Hoje, dividem uma chácara e vivem cada um no seu canto. A medida
protetiva foi retirada e o denunciado, advertido: “Se acontecer de novo, o seu
caso é de cadeia”.
“Eu estava passando, ele jogou a garrafa e bateu em mim”
Dona Júlia tem um corpo franzino e parece acuada na sala de audiências.
Está ali numa posição incômoda. Como denunciante, é a mulher que levou uma
garrafada na cabeça e que foi xingada de piranha, puta e vagabunda. Mas, quando
fala, aparece a mãe. Agredida pelo filho, o denunciou no calor do momento. Mas
se arrependeu. Está ali para contar uma versão diferente, que não atenua o ato
do filho, mas alivia sua culpa. “Ele não arremessou a garrafa para acertar em
mim. Eu que estava passando na hora.” O filho estava com raiva da mulher, que
teria se drogado. Os dois brigaram e a mãe tentou interferir. Na época, ferida,
com sete pontos na cabeça, registrou ocorrência. No tribunal, tenta reverter a
situação. “Na nossa casa, é normal a gente jogar as coisas na parede quando
está com raiva. Ele só repetiu isso.” Dona Júlia entra em contradição durante o
interrogatório. Diz que é analfabeta e que assinou sem ler o depoimento na
delegacia. A promotora e a juíza explicam com cuidado e firmeza que não é culpa
dela o filho estar ali. “Eu decidi processá-lo, não a senhora”, explica a
promotora. De algemas, ele permanece calado na sala, mas sabe-se que ele não
está preso por esse processo. Responde por tentativa de homicídio, entre outras
acusações. Caso decida negar o depoimento feito na delegacia, dona Júlia pode
responder por denunciação caluniosa, cuja pena é maior do que a que será
imposta ao filho por lesão corporal. Ela decide manter o que disse
anteriormente, depois de ser advertida pela juíza. Mas não desiste de atenuar o
ato do filho: “Ele é bom filho, limpa e faz comida quando está em casa. Posso
pedir uma coisa? Um tratamento psiquiátrico para ele”.
“Apenas me defendi de uma mordida”
Osvaldo é
um sujeito forte, pesa 103kg e tem um 1,75m. Está numa audiência de instrução
de uma ação penal por lesão corporal. É acusado de esmurrar, pisar e puxar os
cabelos da mulher, que na hora chamou a polícia. Ao ser interrogado, diz que se
defendeu. “Eu só puxei os cabelos porque ela estava me mordendo, quase arrancou
um pedaço do meu braço.” Segundo ele, a mulher é muito ciumenta e fica
incontrolável quando está na TPM. A juíza lê o laudo, que atesta, entre outras
lesões, um edema de mandíbula. Ele argumenta que, no calor do momento, pode
tê-la machucado, mas que não a agrediu. Ela é quem costuma fazer isso quando
está nervosa. “O senhor depende dela financeiramente? Tem medo dela? Por que
continua a viver com uma pessoa que bate no senhor?”, questiona a juíza.
Osvaldo e a mulher continuam morando juntos. Ele diz que gosta dela e quer
ficar com os filhos. Um detalhe nesse caso chama a atenção: um policial militar
aposentado, arrolado como testemunha no processo por ter atendido a ocorrência,
conta que, na ocasião, tentou dissuadir a mulher a prestar queixa. “Tentamos
fazer a reconciliação deles, perguntamos se realmente ela queria ir à
delegacia.” O promotor o advertiu que jamais um policial pode falar em
reconciliação para uma mulher agredida porque normalmente ela está num ciclo de
violência e a judicialização é o que pode quebrar esse processo.
Fonte: » Cristine Gentil » Luís Tajes –
Fotos: Luís Tajes/CB/D.A.Press – Correio Braziliense