O desenvolvimento da cidade começou na carroceria dos caminhões que
transportavam os operários vindos do Nordeste com as famílias
Nordestinos fugiram da seca e ajudaram a construir estradas e a ocupar o
Brasil central, mas rodovias podem não ter sido a melhor opção
A transferência da capital para o interior do Brasil se deu por
diferentes razões e foi permeada pela desconfiança. São inúmeros os relatos de
quem não acreditava na concretização da promessa do presidente Juscelino
Kubitschek, nem mesmo quando os esqueletos dos prédios da Esplanada despontavam
no horizonte. Havia, por exemplo, uma massa de sulistas pouco dispostos a
largar a vida confortável para conviver com os “lacerdinhas” e o improviso das
habitações do imenso canteiro de obras. Foi o sofrimento do povo nordestino,
escaldado por conta da escassez de água, que beneficiou a cidade que surgia
contribuindo para a ocupação urbana.
A
população sertaneja enfrentou dois anos seguidos de seca, em 1953 e 1954. Em
1958, mais uma vez faltou água no sertão. Para fugir da miséria, milhares
embarcaram nos paus-de-arara rumo a Brasília. Os caminhões chegavam apinhados
de homens, mulheres e crianças. Aqui eles encontraram trabalho. E a cidade
encontrou a gente que lhe faltava. O Brasil passou a se encontrar em Brasília.
O
geógrafo Aldo Paviani, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) e
diretor de Estudos Urbanos e Ambientais da Companhia de Planejamento do DF
(Codeplan), conta que, nos primeiros anos, a capital abrigava mais de 100 mil
habitantes: “O ideário de deslocar a população deu certo. Hoje, beiramos os 3
milhões de habitantes no DF. Se contarmos com os 12 municípios da região
metropolitana, temos 4 milhões de pessoas. Regiões como Tocantins, Mato Grosso
e Amazônia também foram ocupadas”.
A abertura das estradas foi fundamental para a construção de Brasília
Já a integração por meio de rodovias representa, para Paviani,
falta de visão de Juscelino e dos governos seguintes. “Brasília devia ter sido
radial de ferrovias. Somente agora se fala na construção de uma ferrovia para
ligar Brasília-Anápolis-Goiânia. Além disso, o Brasil não soube manter suas
ferrovias e ainda desativou muitas linhas que existiam”, critica.
Professor
aposentado da UnB, o arquiteto e urbanista Antônio Carlos Carpintero não tem dúvida
quanto ao impacto da construção da capital para efetivar a integração
nacional. Um avanço que poderia ter ocorrido anos antes, caso o relatório da
Missão Cruls (Leia Prara saber mais) não tivesse ficado engavetado por
quase quatro décadas. O motivo principal, segundo ele, era a disputa política.
“Os liberais daquela época e os neoliberais de hoje são exatamente iguais. O
Getúlio (Vargas) encarnou o ideal nacionalista, mas na cabeça do Lacerda
(Carlos Lacerda) o estado não deveria intervir na localização da capital. Ele e
os outros não queriam a mudança da capital, pois ela representava a
transferência da economia do país”, diz Carpintero.
Quando JK
bateu o martelo, parte dos políticos contrários à ideia se aliaram ao governo,
pois perceberam que faturariam com a valorização das terras. “Como não
puderam evitar a construção de Brasília, se apropriaram dela. Quem ganhou
dinheiro foram os liberais, donos de terras. Mas o país ganhou, porque se
ocupou as chamadas terras altas para garantir a ocupação do território”,
comenta. Era onde começava o desbravamento da mata para abrir a rota até
Brasília.
Belém-Brasília foi o projeto rodoviário mais ambicioso do desbravamento
do Centro-Oeste
· Redemoinhos
Lacerdinha é como os moradores de Brasília chamavam os redemoinhos de
vento que levantavam poeira especialmente no mês de agosto. O nome é uma
referência Carlos Lacerda, adversário político de JK, que se opunha à
construção de Brasília.
· Para saber mais - Ideia data do século 19
· Para saber mais - Ideia data do século 19
Missão Cruls é o nome da comissão criada pelo presidente Floriano Peixoto em
1892 para demarcar a localização do Distrito Federal. O grupo liderado por Luis
Ferninand Cruls saiu do Rio de janeiro em junho do mesmo ano e, durante sete
meses, percorreu 14 mil quilômetros fazendo demarcações de área e colhendo
informações sobre a flora e fauna.
· O bandeirante do século 20
Bernardo Sayão Neto cresceu ouvindo as histórias dos feitos do avô — de
quem herdou o nome — por meio de tios e avós. Símbolo do bandeirantismo do
século 20, Bernardo Sayão seguiu com o objetivo de desbravar o Brasil,
abrindo estradas e ligando destinos. Nas palavras de JK, Sayão era um pioneiro
nato. Muito antes de existir Brasília, ele já desbravara o sertão goiano.
“Bernardo Sayão era inquieto como qualquer bandeirante”, escreveu JK.
Em uma
citação, Juscelino lembra do episódio em que o embaixador Otávio Dias Carneiro,
integrante do grupo de técnicos do Conselho do Desenvolvimento, perguntou ao
presidente, com apreensão, levando em conta a precariedade daquela pista:
“Presidente, é ali que vamos aterrissar?” Em face da afirmativa, chamou os
demais passageiros e lhes mostrou a raspagem no cerrado, feita por Bernardo
Sayão. Um silêncio significativo se fez sentir no interior do avião.
Sayão
desejava a Belém-Brasília porque sua personalidade de pioneiro e de bandeirante
se confundiam. Aspirava abrir a estrada para colonizar. Segundo JK, o
engenheiro abria os braços de gigante como se quisesse abraçar o Planalto e
repetia com frequência: “Consegui meu sonho, a espinha dorsal. Vocês não
imaginam a riqueza destas matas. Madeira de lei. Terras de cultura. E tudo de
primeiríssima.”
Sobre as
estradas, o que se conta, diz Bernardo, é que havia uma estradinha que chegava
a Brasília passando por Anápolis até Formosa. Coube ao avô melhorar o acesso. E
ele o fez em um ano. Entregou a rodovia asfaltada com oito pontes. “Ele
acompanhava a obra de avião. Um dia, ele sobrevoava e viu as máquinas paradas.
Pousou para saber por que não estavam trabalhando. O motivo era a falta de
combustível. Ele entregou uma mala de dinheiro que usaria para pagar outra
obra. Resolveram o problema e o serviço foi retomado”, relata.
O
engenheiro Bernardo Sayão morreu sem ver a conclusão do seu sonho. Segundo o
neto, ele avançou 40km mata adentro em uma picada com o grupo de trabalhadores.
Estava embaixo de uma barraca de lona quando foi atingido pelo galho de uma
árvore. Sofreu um traumatismo craniano e quebrou um braço e uma perna. “O seu
Chico, um tratorista que trabalhava com ele, contou que os homens fizeram uma
canga, colocaram meu avô em uma rede e correram 40km até a clareira. Eles iam
se revesando. Aí, colocaram o pano branco com sangue do meu avô e pediram
socorro ao avião que sobrevoava a área duas vezes ao dia”, conta.
Ao
avistar o pano, o piloto teria avisado ao helicóptero da presidência, que foi
ao socorro de Sayão. Ele morreu dentro da aeronave. Seu velório, conta-se, foi
o único evento que parou Brasília durante a construção. “Enquanto os
trabalhadores velavam o corpo, outros abriram a estrada principal do cemitério
e fizeram a cova. Meu avô foi o primeiro a ser enterrado ali”, diz.
A morte
de Sayão ainda alimentou a lenda de que ele tinha sido comido por índios
canibais. “Quando foi construir a Belém-Brasília, ele espalhou a historia de
que lá havia onça e índio que comia gente. Minha avó não autorizou a abertura
do caixão. Aí, parte dos trabalhadores acreditavam que ele tinha sido comido
por índio ou onça”, ri Bernardo Sayão Neto.
Fonte: Adriana Bernardes - Flávia Maia –Fotos: Arquivo/CB/D.A.Press – Arquivo
Público/DF – Correio Braziliense