Foto Renata Samarco/Divulgação - Paulinho da Viola e Reco do Bandolim
*Por Severino Francisco
No princípio, era a solidão espacial do descampado.
Para defender-se, os brasilianos fizeram do apartamento de Raimundo de Brito,
na 105 Sul, o quintal para as primeiras rodas de choro. Raimundo era um
jornalista muito culto e sarcástico. As mulheres dos boêmios marcavam sob
pressão e foram batizadas com a sigla Fidom — Fiscalização doméstica. Em 1967,
o médico Arnoldo Velloso e o advogado Francisco de Assis, o Six, viajaram até o
Rio de Janeiro para conhecer Jacob do Bandolim.
O mestre estava prostrado em uma cama havia três meses, com um sério
problema na coluna. Six era gaiato e se apresentou na condição de
ginecologista. Velloso estudou na Alemanha e, com ajuda de Six, fez aplicações
da técnica de terapia neural. No dia seguinte, quase que milagrosamente, Jacob
levantou-se, pegou o bandolim, chamou Elizete Cardoso e tudo virou uma festa.
E, assim, estabelecia-se uma conexão afetiva e musical de Jacob com Brasília.
Quando Jacob tocava nas reuniões do sábado à tarde, no apartamento de
Raimundo de Brito, as sessões se revestiam de uma sacralidade de missa, era
preciso cuidado até para respirar. Jacob exigia uma reverência absoluta à
música. Incentivava e cobrava. Não poderia haver mestre mais carismático e
rigoroso. Jacob surpreendeu a todos ao afirmar que o citarista Avena de Castro
era o seu melhor intérprete.
Se o samba é um gênero das classes populares, o choro é de classe média;
e veio para Brasília transferido com os funcionários públicos. Ao se mudar do
Rio para a capital modernista, Bide da Flauta, o instrumentista preferido de
Pixinguinha, resolveu comprar uma espingarda, pois os jornais cariocas diziam
que havia muita onça. Mas ele não encontrou nenhuma onça; topou com Pernambuco
do Pandeiro, que logo o convidou para animar as rodas de choro.
Certa noite, Tio João travou um duelo com um morcego da Rodoviária até o
Clube do Choro. Tio João se defendia com o trombone, mas o morcego
contra-atacava com voos rasantes na escuridão do Eixo Monumental. Quando as
rodas de choro foram transferidas para o apartamento de Odette Ernest Dias, na
311 Sul, as plantas da flautista revelaram um ouvido apuradíssimo. A audição
contínua daqueles mestres fez com que as plantas vicejassem com um esplendor
extraordinário.
Com extrema lucidez, Reco do Bandolim profissionalizou o Clube do Choro
e criou a Escola de Choro Rafael Rabello. Elas projetaram o choro rumo à
plataforma do futuro; antes delas, o choro era “música dos velhos”. Depois,
tornou-se música dos jovens. Hoje, é possível encontrar uma legião urbana de
crianças e adolescentes armados com violões, cavaquinhos, bandolins e
pandeiros.
Revelou uma infinidade de talentos da música, que brilham nos palcos
mais importantes do país. Na passagem dos 57 anos de Brasília, gostaria de
brindar os 40 anos do Clube do Choro, endereço da boa música e endereço da
educação de qualidade. É o que precisamos para construir um país melhor. O
Clube do Choro é um motivo de orgulho para Brasília.
(*) Severino Francisco – Jornalista, colunista do
Correio Braziliense – Foto/Ilustração: Blog - Google