*Por Wilde Cardoso - Membro da Associação Andar a Pé
No distante 8 de agosto de 1969, um conjunto de músicos resolveu passar
por uma faixa de pedestres e registrar a foto para a capa de seu último álbum.
Um mês mais tarde, o disco Abbey Road dos Beatles era lançado. Seu sucesso
musical não foi maior que a marcante capa do LP, até hoje referenciada como uma
justa homenagem ao pedestre no mundo todo. Nada mais emblemático para que se
propusesse que essa data fosse dedicada ao Dia Mundial do Pedestre... mesmo em
Brasília, por mais que isso possa contrariar o mito de que os brasilienses são
feitos de cabeça, tronco e rodas.
O relatório do projeto de Lúcio Costa apresenta o mall dos ingleses,
como ele se referia à futura Esplanada dos Ministérios, onde haveria “extenso
gramado destinado aos pedestres”. Praças seriam construídas na plataforma
superior da rodoviária para o livre trânsito das pessoas às áreas comerciais, o
tráfego dos automóveis se processaria sem cruzamentos e o chão seria restituído
às pessoas a pé.
Eram os idos de 1950 e 1960, anos dos nascimentos de Brasília e dos
Beatles. Brasília fazia muito sucesso no mundo dos arquitetos. Crescia e muitas
pessoas e carros passavam por ela. Os Beatles também eram muito famosos.
Tamanho foi seu sucesso que, em 1966, pararam de circular em meio a multidões.
Estavam isolados no estúdio da Abbey Road e esse isolamento os esgotou. Ao
terminarem sua obra, parecem ter buscado resgatar aquilo que já não podiam
fazer como os demais cidadãos: passar por onde todos deveriam passar,
tranquilamente, atravessando a rua em frente ao seu trabalho. E aconteceu a
foto de 8 de agosto, motivo de muitas outras especulações, mas notável ao
consagrar a faixa para os pedestres.
Na década de 1990, Brasília começou a se distanciar do seu projeto
original e, nos anos que seguiramm foi sufocada pelos automóveis. O Eixão
impedia os amigos de irem à casa da “Noélia” e as passagens subterrâneas não
davam a mínima segurança aos trabalhadores que delas se utilizavam. Um dia,
Brasília passou a ficar escandalizada com o enorme número de pedestres
vitimados no trânsito. A cidade rodoviarista também precisa de sua faixa de
pedestres para se libertar. Era 1º de abril de 1997, quando bem coordenada
campanha pela paz no trânsito conseguiu transformar a lei em respeito às
pessoas que nelas atravessavam.
Seus cidadãos ficaram orgulhosos em divulgar a todos os cantos que
Brasília respeitava o pedestre. Um pé na faixa ,e os carros paravam. O pedestre
se libertara, enfim a cidade poderia ser novamente o seu refúgio. Ledo engano.
Em 2016, morreram 132 pedestres no trânsito, sendo seis atropelados na faixa de
pedestres. A faixa como mito não foi suficiente para que a cidade recuperasse o
respeito proposto originalmente pelo seu criador garantindo o chão livre aos
cidadãos.
Alguns setores da cidade avançam rapidamente contra o direito de
andar a pé. Esse é o caso dos setores comerciais e bancários no centro de
Brasília, cujo abandono é notável à noite e aos fins de semana. Situação que é
presente também nas passagens subterrâneas sob o eixo rodoviário, aqui, a
qualquer hora ou dia da semana. A ocupação das quadras 700 contraria
frontalmente o ato livre de circular das pessoas. As casas se fecham em grades,
as grades invadem as áreas públicas, as áreas públicas são abandonadas e
escuras, os pedestres ficam solitários e muitas vezes apavorados ao andar por
seus caminhos.
Há muito o que fazer em Brasília pelo Dia Mundial do Pedestre. Aliás,
Brasília é por si só uma comemoração ao desafio. As pessoas não acreditavam na
sua criação. Quando decidida, não acreditavam que seria construída. Quando
construída, não acreditavam que seria habitável ou habitada.
Quando se consolidou, disseminaram vários mitos sobre a cidade: as
árvores não cresceriam, e ela virou uma cidade-bosque; a cidade não tinha calor
humano, e surgiram os movimentos culturais dos anos 1970 e 1980; a Esplanada
dos Ministérios era grande demais para as manifestações populares, e o povo
encheu seus gramados muitas e muitas vezes para protestar e para festejar.
É bem possível que alguém continue a dizer que Brasília é a cidade dos
carros e não se pode negar que é também. No entanto, ela é a cidade do metrô,
dos ônibus, das bicicletas, dos skates e dos patins, e, por assim ser, ela é a
cidade dos pedestres, aqueles que utilizam todos esses meios de locomoção.
É preciso comemorar Brasília, a capital do projeto modernista que pensou
a cidade para as pessoas. É preciso poder andar a pé por suas calçadas e
observar os i-pês (sic) que resistem lindos a cada estação. Viva Brasília,
capital dos pedestres.
(*)Por Wilde Cardoso - Membro da Associação Andar a Pé – Foto/Ilustração:
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