Visão do Lago
*Por Severino Francisco
Confesso que sou um usuário. Não disso
que vocês estão pesando, mas sim do transporte público. Circulo muito de ônibus
e, em um desses deslocamentos, deparei-me com André Correia, aluno do curso de
jornalismo em que eu era professor e, mais tarde, colega de redação. Perguntei
em que jornal estava trabalhando e ele me respondeu que havia mudado de
profissão e agora era professor de educação física no Lago Paranoá.
Estudou jornalismo, mas o esporte
aquático estava no sangue e, ao fazer um trabalho de escola sobre um plano de
negócio, concebeu uma empresa de instrução de remo. Isso o levou até o curso de
educação física.
O avô, Agenor Correia, havia sido
campeão de remo muitas vezes nas décadas de 1930 e 1940; o pai, Dozinho, fundou
o remo olímpico em Brasília. Agora, André passa boa parte de sua vida dentro do
Lago Paranoá.
De minha parte, sou um animal do deserto
e sofro com a miragem da água. Mas, para mim, o Lago é, principalmente, uma
paisagem. Por isso, fiquei com muita curiosidade de conhecer a visão de quem
vive dentro da paisagem, sente a sua pulsação, convive com os bichos, sabe dos
perigos e experimenta os êxtases.
“O que é esse Lago para você?”,
pergunto: “É uma joia, é uma maravilha”, responde André, com entusiasmo:
“Garante o equilíbrio ecológico do brasiliense. Talvez sem esse Lago, Brasília
fosse ainda mais árida, pois o cerrado foi muito devastado. O Lago dá um
alívio”.
Digo a André que desconfio da poluição
do Lago, mas ele discorda: “Nos primeiros tempos, as árvores não foram
retiradas. A matéria orgânica apodreceu e a gente sentia o mau cheiro de longe.
No entanto, agora existem poucos pontos isolados de poluição, como é o caso da
área próxima à estação de tratamento de esgoto, no fim da Asa Norte”.
Ao percorrer o Lago, André se depara
com lugares em que a água é translúcida. É uma Brasília diferente que se
apresenta. Os biguás, os mergulhões e as garças fazem a festa para os olhos.
Encontra muitas famílias de capivaras, jacarés em lugares isolados e ariranhas
em ocasiões mais raras: “Algumas vezes, o pessoal que faz pedalinho vê uma
cabeça de bicho repontado na água e se assusta pensando que é cobra, mas são
pequenas tartarugas”.
O Lago me parece um lugar traiçoeiro.
Onde mora o perigo? “Sim, tem razão. É porque você tem uma visão plana na beira
da Prainha, mas, se vai para o meio da Ponte Honestino Guimarães, a
profundidade e o volume de água aumentam. Muita gente morreu afogada ali. É
porque o relevo acompanha a descida por onde passava o Rio Paranoá. Sempre
recomendo que se nade só nas margens”.
A liberação da orla estimulou um
movimento de ocupação da beira do Lago. André prevê que a área se transformará
em um território de lazer semelhante ao que é hoje a Água Mineral. Todavia, até
lá existe um longo caminho a percorrer: “Primeiro, o poder público precisa
oferecer mais áreas urbanizadas no Lago. Ele não está preparado para receber
pessoas. Depois, é preciso investir pesado em educação. Você sabe, educação é
tudo”.
André diz que um dos instantes de maior
alumbramento acontece quando o céu desce e se mistura com o Lago nas alvoradas
e nos poentes. É um momento de beleza sobrenatural.
Desembarquei no meu ponto, André seguiu
viagem e fiquei pensando: para mim, o Lago é uma entidade mítica. Tivemos a
nossa Atlântida soterrada: a Vila Amauri. É o Lago que me dá a ilusão de que o
sertão virou mar.
(*) Severino Francisco – Jornalista, repórter do
Correio Braziliense – Foto/Ilustração: Blog - Google