Arquitetos
e urbanistas de gerações distintas se preocupam com a conservação do Plano de
Lucio Costa. Invasões de áreas são um dos aspectos que mais incomodam os
defensores do tombamento
*Por Nahima Maciel - Flávia
Maia
Uma capital que surgiu da mente de
quatro cavaleiros. Todos com sonhos de liberdade e almas de poeta. Athos Bulcão
queria libertar as cores, Oscar Niemeyer, as formas, Burle Marx, o verde, e
Lucio Costa, o homem. Em uma visita a Brasília, Pablo Neruda sentiu-se em uma
cidade sem portas. O aspecto monumental e o horizonte limpo encanta, há
décadas, variados gostos e culturas. Tanto que, há 30 anos, a cidade figura-se
na lista de Patrimônio Cultural da Humanidade ao lado de locais relevantes para
a história, como o Palácio de Versalhes, na França.
Como cidade viva, Brasília pulsa. Precisa conservar
a memória, viver o presente e o maior desafio, pensar o futuro. Como conciliar
o título internacional, o tombamento local e federal e as mudanças que a
sociedade vai demandando? A cidade tornou-se centro da preocupação de
diferentes gerações de arquitetos. A ocupação irregular, o transporte público,
o excesso de carros e a apropriação do espaço público estão no centro das
discussões de quem pretende manter a cidade com as ideias vivas de seus
mentores.
Urbanista e professor emérito da
Universidade de Brasília (UnB), José Carlos Coutinho chegou à cidade em 1968
para participar da reestruturação do Instituto de Artes da UnB. Veio para ficar
seis meses, mas se envolveu de tal maneira que se tornou brasiliense de corpo e
alma. Quase 50 anos depois, ele se incomoda quando anda pela cidade e vê
algumas deformações da proposta original. “A apropriação do espaço público para
interesse privado é uma desfaçatez. São construções nos corredores de livre
circulação, prédios que impedem a passagem pelos pilotis como se a área fosse
privada. É um peculato da área pública. Isso é de uma agressividade…”
Coutinho acredita que o título da
Unesco consegue inibir a ocupação desordenada maciça no Plano Piloto. Ele
defende que os próximos 30 anos serão de conservação se houver investimento na
educação dos gestores e da sociedade. “Tem que começar educando os políticos,
os administradores das cidades. A gente vê abusos do próprio poder público,
como carros de polícia estacionados em gramados, nas ciclovias.” Para Coutinho,
o planejamento é essencial. “Temos que manter as escalas de Lucio Costa, os
horizontes, a vegetação. E isso é possível se houver um planejamento para canalizar
as forças de crescimento. Esse crescimento não pode ser espontâneo, ditado
apenas pela ganância dos especuladores.”
O fotógrafo e urbanista Luis Humberto
está em Brasília desde 1961. Como arquiteto, foi coautor dos primeiros prédios
da UnB com Alcides da Rocha Miranda. Em 1966, no entanto, Luis Humberto decidiu
dedicar-se à fotografia, área em que ganhou projeção nacional. Como
fotojornalista, trabalhou em diversos veículos de comunicação nacionais. Sempre
foi um admirador de Brasília. “Eu vim pelo encanto da cidade. Como arquiteto,
eu queria viver em uma cidade que eu pudesse contemplar o silêncio, o cantar
dos pássaros e a sombra das árvores. Hoje não dá mais. Se você aproveita a
sombra de uma árvore, pode ser assaltado.”
Sobre o futuro, Luis Humberto é
reticente. “Nos próximos 30 anos, não vou estar aqui para ver o que aconteceu,
estarei em outros ares”. Ele acredita que a política de ocupação adotada,
principalmente, durante a gestão de Joaquim Roriz, com a doação de lotes,
prejudicou a cidade. “Não condeno quem veio. Em um país cheio de pobreza,
oferecer lote era um atrativo. Mas tinha que oferecer trabalho também”. Para
ele, o título da Unesco e o tombamento vão permitir a conservação só do Plano
Piloto. “Será como a Havana Vieja. Conserva o centro para o turista olhar”.
Sustentabilidade
Transporte público eficiente e
abrangente, sustentabilidade, integração social e redução das desigualdades
estão no topo da lista de urgências que a nova geração de arquitetos de
Brasília elenca para a cidade. Se hoje o sonho moderno completa 30 anos do
título de Patrimônio Cultural da Humanidade, amanhã será preciso pensar em como
não transformá-lo em um pesadelo. E para os arquitetos Eduardo Sainz, 30 anos,
Gabriela Bilá, 27, e Raffael Inneco, 37, o trabalho passa por ideias que não
incluem só arquitetura, mas inclusão social e meio ambiente.
Eduardo Sainz é boliviano e veio para
Brasília há 7,5 anos para projetar uma casa para parentes, brasilienses. Foi
ficando, trabalhou em outros projetos e adotou a cidade. Abriu escritório,
casou com uma arquiteta brasiliense e passou a desenvolver projetos na capital.
O mito moderno do qual tanto ouvira falar na universidade adquiriu feições
reais e bem diferentes daquelas exibidas nos livros. Foi choque de realidade, no
bom sentido. “Ela tem uma identidade própria, é uma cidade que funciona de
forma muito autêntica e exclusiva. Não é similar a uma metrópole, mas é uma
capital. Não é uma cidade de interior, mas também não é uma cidade grande. É
uma cidade planejada para aquela época, os anos 1950 e 1960 e que hoje tem
muita deficiência para o estilo de vida contemporâneo”, acredita.
“Gentrificação”
Quando Brasília foi planejada,
preocupações com meio ambiente e transporte se resumiam aos canteiros
arborizados e as vias largas para os carros. Hoje, essas duas noções estão bem
distantes daquele pensamento. “Naquela época, a sociedade não tinha
questionamentos energéticos, de sustentabilidade, de demografia, de inclusão
social. A cidade funciona super bem para um cidadão classe B+, classe A, uma
família com três carros, mas vejo uma certa deficiência com esse fenômeno da
gentrificação”, diz Sainz.
Fenômenos como Águas Claras e os
condomínios do Jardim Botânico são, para ele, uma gentrificação à brasileira:
os preços dos imóveis e do custo de vida ficam tão elevados nos centros
privilegiados que antigos moradores são obrigados a encarar opções mais baratas
e cada vez mais distantes de seus locais de trabalho.
Alternativas
Para a arquiteta e designer Gabriela
Bilá, autora do Novo guia de Brasília, esse mesmo fenômeno é responsável por
uma certa falta de diversidade no Plano Piloto. Bilá não se cansa de bater na
tecla do transporte de qualidade e acessível como solução para boa parte dos
problemas de Brasília. Se os últimos 30 anos enalteceram o carro, está na hora
de as próximas três décadas darem lugar ao ônibus, metrô e bicicleta. “O real
problema é a falta de transporte público e a segregação em relação às cidades
satélites. Se a gente conseguisse vencê-lo, conseguiria dar um salto cultural
forte, porque iria realmente misturar todo mundo”, garante. “Agora, falta o
interesse de focar nisso com políticas públicas. Toda vez que se fala em
incrementar o transporte sempre, é para aumentar via, criar mais
estacionamentos, o tipo de coisa que só favorece mesmo o carro.”
Bilá nasceu na capital e estudou
arquitetura na UnB. Filha de imigrantes que vieram do Norte e Nordeste, cresceu
como uma típica brasiliense. Aos 18 anos, passou no vestibular e ganhou um
carro. Foi preciso sair do Brasil e morar na Alemanha e na Holanda para mudar
de postura. Quando voltou, a arquiteta decidiu ficar um tempo sem carro e passou
a andar a pé, de ônibus e de bicicleta. Descobriu outra Brasília. No comércio
da quadra onde mora, se deparou com lojas que nunca havia percebido. Da janela
do ônibus, viu a paisagem em outra velocidade e por outro ângulo, desenvolveu
um olhar mais atento e conseguiu reparar detalhes impossíveis de serem vistos
quando se está ao volante. “A maneira como você se desloca pela cidade
altera sua percepção”, diz.
Para a arquiteta, uma situação ideal
quando Brasília comemorar os 60 anos do título da Unesco seria ter o
Plano Piloto como um centro histórico dos anos 1950, assim como o centro de
Ouro Preto (MG) ou o Pelourinho, em Salvador (BA), são referências históricas
do período colonial. “E com uma integração através do transporte para que tudo
que está em volta se desenvolvesse de uma forma legal e não como uma bolha. Só
com transporte chegando em todos os lugares e educação, única via para reduzir
as desigualdades, outras pessoas teriam acesso ao Plano Piloto. Hoje é
praticamente homogêneo o tipo de pessoas que moram aqui”, analisa a arquiteta.
Diferente
O fato de Brasília ter nascido de um
projeto, de alguém ter pensado na cidade como um local no qual pessoas iriam
morar e trabalhar encantava o arquiteto Raffael Innecco desde pequeno. Além
disso, quando viajava de férias, voltava impressionado com o quanto sua cidade
natal era diferente. Não à toa abriu a BSB Memo, uma loja de objetos de design
inspirados nas formas e nos símbolos da capital. Formado em arquitetura
pela UnB, ele estava com 7 anos quando Brasília foi inscrita na lista da
Unesco. De lá para cá, viu a cidade mudar junto com seu olhar, que passou, ao
longo dos anos, de menino para adolescente e para adulto. “Fico triste porque
acho que a gente está muito aquém de dar a Brasília o respeito que ela deveria
ter. Em especial, nas partes comerciais da cidade. A gente vê muito descaso e
falta de compreensão de qual era a ideia que Lucio Costa tinha para a cidade”,
lamenta.
A falta de compreensão do projeto
original resulta em comentários como “Brasília não deu certo”, mas Innecco
rebate com a crença de que, na verdade, a cidade está muito à frente de seu
tempo. “A gente ainda vai demorar algumas décadas para as pessoas valorizarem a
ideia inicial”, acredita. “Fico pensando em como essa parte dos comércios
locais poderia ser uma coisa muito mais integrada com as quadras residenciais.
A gente vê várias iniciativas nesse sentido, mas ainda há pessoas brigando para
mudar essa ideia e fazer uma fachada fechada pra quadra, tratar aquilo como se
fosse uma fachada de serviço.”
Também causa incômodo no arquiteto a
maneira como tem sido deturpada a sinalização urbana idealizada por Danilo
Barbosa nos anos 1970 e hoje incorporada ao acervo de design do Museum of
Modern Art (MoMA) de Nova York. “A gente perdeu o respeito por todo um projeto,
principalmente nesses sistemas viários novos no final da Asa Sul: a sinalização
não usa a linguagem e o padrão desenvolvidos para a cidade. É uma pena, porque
é uma coisa que faz parte da nossa identidade”, aponta Innecco.
Influência
O Plano pode ser uma ilha, mas Innecco
acredita que o DNA urbanístico contaminou cidades como Ceilândia, Taguatinga e
Sobradinho, com preocupação de manter canteiros centrais grandes e faixas
largas. No entanto, regiões mais recentes perderam essa preocupação. “Em Águas
Claras, o plano urbanístico já foi feito de forma a especular o valor
imobiliário de forma tão agressiva que não tem esse olhar da vivência da
cidade, com a vegetação etc. E vai piorar”, afirma. Brasília nascer de um
planejamento e acabar protegida por um título da Unesco foi um fato único e
raro no país. Pouca coisa hoje, lembra Innecco, é tratada da mesma forma. “É
tudo muito aos trancos e barrancos. Primeiro tem um assentamento e depois vai
resolver o problema causado.”
Comemoração oficial
A Secretaria de Cultura celebra hoje os 30 anos do título de Patrimônio Cultural da Humanidade com a sanção da Lei Orgânica da Cultura (LOC) e uma nova edição do Prêmio José Aparecido de Oliveira. A nova lei institui a adesão do DF ao Sistema Nacional de Cultura e prevê mecanismos de desburocratização e facilitação do acesso aos recursos para a área. “Há muito o que se celebrar, mas também é um momento de reflexão sobre nossa responsabilidade diante do bem público e, principalmente, de ação para valorização dos nossos espaços culturais”, acredita o secretário de Cultura, Guilherme Reis. Segundo ele, a LOC é um grande avanço para artistas e profissionais da cultura. “É um grande avanço de modernização legal que cria um sistema distrital de cultura e vários instrumentos que possibilitarão cuidar melhor desse patrimônio.”
Para saber mais - Relatório a cada dois anos
Cabe ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) encaminhar, a cada dois anos, os relatórios ao Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco. O documento é feito com o GDF.
Nesses 30 anos, o governo brasileiro
mandou 12 relatórios ao organismo internacional. Em 1993 e em 2012, a Unesco
enviou técnicos para fazer um monitoramento extraordinário devido a denúncias
de desvirtuamento. Após a visita de 2012, o relatório fez algumas conclusões,
entre elas, sugeriu a aprovação imediata do Plano de Preservação do Conjunto
Urbanístico de Brasília (PPCUB), manter o máximo de seis andares nos prédios do
Plano Piloto, proibir construções residenciais na orla do Lago Paranoá, criar
transporte público de qualidade para evitar o uso de transporte privado e
melhorar a infraestrutura das cidades-satélites.
De acordo com o superintendente do
Iphan-DF, Carlos Madson Reis, para preservar o conjunto urbanístico da cidade,
duas portarias foram publicadas. A nº 166/2016 complementa e detalha a de nº
314/1992. Estabelece, por exemplo, quantos metros um prédio pode ter — antes,
só tinha a quantidade máxima de pavimentos. Estabelece também a consulta do
Iphan em obras rodoviárias. “As cidades têm dinâmicas, mudam porque a sociedade
muda. A geração da década de 1960 é diferente da de hoje. O que temos que fazer
— e estamos fazendo — é caminhar para o melhor entendimento dos diversos
agentes envolvidos na urbanidade”.
(*) Nahima Maciel - Flávia Maia - Fotos: Breno Fortes-CB/D.A.Press - Correio Braziliense
Excelente matéria que pensa Brasília e o Distrito Federal. Mas a Cidadania ativa do DF é elemento indispensável para buscar solução para os problemas naturais e os que a ganância cria. E há uma fórmula que ajudei a colocar na Lei Orgânica e que os deputados distritais ainda não regulamentaram, preocupados com ao surgimento de novas lideranças que ameacem a reeleição deles: o artigo 12, que trata da formação de Conselhos de Representantes Comunitários, a partir das entidades da sociedade civil. E importante: não é preciso esperar a regulamentação, é fazer, é criar, como fiz em Taguatinga, com a criação da Câmara de Vereadores Comunitários de Taguatinga, raiz de muitas outras que unem as pessoas - cidadãos - em torno de seus problemas e aspirações. É hora da sociedade agir, lutando pela regulamentação e gerando entidades para cuidar do tão abandonado quadradinho chamado DF.
ResponderExcluirEnquanto isso não vier, especialmente no chamado Plano Piloto...