Integrantes da Missão Cruls posam no quintal de um
casarão em Pirenópolis: grupo provou que o Pico dos Pireneus era bem menor do
que o propagado por goianos
Em dia de um decisivo Brasil x Bélgica
pela Copa do Mundo, conheça a história do astrônomo nascido no país europeu que
comandou a primeira expedição científica no Centro-Oeste brasileiro e morreu há
110 anos
*Por » Renato Alves
Brasília entrou para o mapa graças a um belga. Coube ao astrônomo Louis
Ferdinand Cruls desbravar o sertão de Goiás e demarcar o quadrilátero onde
seria instalada a nova capital do Brasil. Ele comandou um grupo de
especialistas que fez estudos científicos pioneiros na região Centro-Oeste,
mapeando aspectos climáticos e topográficos, além de estudar a fauna, a flora,
os cursos de rios e o modo de vida dos habitantes. Isso há mais de 125 anos.
Nascido em Diest, em 1848, Cruls morreu em Paris,
em 21 de junho de 1908
A mudança da capital do litoral para o interior do país era prevista no
artigo terceiro da Constituição de 1891, da primeira República. “Fica
pertencente à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400
quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para nela
estabelecer-se a futura Capital Federal”, dizia a Carta Magna.
O governo queria ocupar o vasto e desabitado sertão. No fim do século
19, o Brasil tinha pouco mais de 14,3 milhões de habitantes — sete em cada 10
brasileiros moravam no litoral, e o índice de ocupação no Centro-Oeste era de
0,2 habitante por quilômetro quadrado, segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE).
Então presidente da República, o marechal Floriano Peixoto citou o
artigo terceiro em 12 de maio de 1892, na abertura da segunda sessão ordinária
da primeira legislatura. Ele cobrou dos parlamentares o cumprimento da lei. O
Congresso Nacional destinou os recursos necessários à exploração da região da
nova capital. Por meio da Portaria 114-A, Floriano Peixoto criou a Comissão
Exploradora do Planalto Central.
Dom
Pedro II
Escolheram como chefe da comissão Louis Cruls, professor da Escola
Superior Militar e diretor do Observatório Astronômico do Rio de Janeiro, atual
Observatório Nacional. Mais conhecido pelo nome aportuguesado, Luiz Cruls havia
se tornado amigo do diplomata Joaquim Nabuco e dado aulas de astronomia ao
imperador Dom Pedro II. Para compor a Comissão Exploradora, Cruls escolheu
servidores do Observatório e engenheiros militares.
Na manhã de 9 de junho de 1892, 22 homens partiram do Rio de Janeiro
rumo a Goiás. Eles levavam 206 caixotes e fardos (cerca de 10 toneladas), com
barracas, armas, mantimentos e uma grande quantidade de instrumentos
científicos. Fizeram de trem a primeira parte da viagem, entre o Rio e Uberaba.
A estrada de ferro da Companhia Mogiana terminava na cidade do Triângulo
Mineiro. A partir dali, os integrantes da Comissão seguiram em lombo de burro.
Em burros, eles cruzaram o Planalto Central de 1892 a 1894 para estudar
a região e definir a área onde seria construída a futura capital. Registraram
tudo o que havia nessas terras. Os aventureiros deixaram como herança mapas,
relatórios e fotografias. Também fizeram estudos que iam além da obrigação.
Cadernetas de anotações dos cientistas da Missão
Cruls são conservadas pelo Arquivo Público do DF
Acerto histórico
Cruls aproveitou a estada em
Pirenópolis (GO) para acabar com um dilema. Goianos juravam ser o Pico dos
Pireneus como o ponto mais alto do Brasil. Falavam em cerca de 3 mil metros de
altitude. Referência publicada pelo padre H. R. Des Genettes, erudito e morador
de Pirenópolis que, em 1873, descreveu o monte a 2.932m do nível do mar,
desbancando os picos do Itacolomi, Itambé e o Itatiaia.
Cruls enviou uma equipe de
especialistas ao Pireneus para fazer uma medição precisa, com equipamentos
adequados. Os pesquisadores iniciaram a subida da serra em 7 de agosto de 1892.
No relatório final da missão, Cruls destacaria as Minas do Abade, já em ruínas.
No dia seguinte, terminaram a subida do pico e aferiram a altitude: 1.385m. O
pico não era o mais alto do país, nem sequer estava próximo disso.
Impacto ambiental
O sucesso da Missão Cruls motivou uma
segunda Comissão do Estudo da Nova Capital, em 1894, pouco conhecida apesar de
os lagos de Brasília terem sido preconizados pelo botânico e paisagista francês
Auguste François Marie Glaziou, que participou desta segunda expedição,
interrompida por falta de verba.
Nas duas missões, os astrônomos,
geógrafos e naturalistas que as compunham descobriram acidentes geográficos da
maior importância ambiental, como as águas quentes de Caldas Novas, o Salto de
Itiquira — uma das mais altas cachoeiras do país — e as nascentes de Águas
Emendadas, berço de três das maiores bacias brasileiras: Amazônica, Platina e
São Francisco.
Ao medirem a altitude, o fluxo dos
rios, a umidade do ar e a intensidade das chuvas, os cientistas elaboraram, um
século antes, o procedimento que a Constituição brasileira de 1988 tornou
obrigatório: a realização de estudos de impacto ambiental antes de qualquer
construção importante. Os relatórios das duas expedições, publicados em 1893 e
1896, respectivamente, são os dois primeiros Relatórios de Impacto ao Meio
Ambiente (Rima) feitos no Brasil.
Luiz Cruls liderou outras expedições
científicas importantes dos séculos 19 e 20, como a observação da passagem de
Vênus pelo disco solar em 1882 e a conferência internacional que definiu o
meridiano de Greenwich como referência para todas as nações. Nascido em Diest,
em 1848, Cruls morreu em Paris, em 21 de junho de 1908, há 110 anos.
Laboratório e oficina
Laboratório e oficina
Os caixotes continham dois círculos
meridianos, teodolitos, sextantes, micrômetro de Lugeol, luneta astronômica,
heliotrópios, cronômetros e relógios, seis barômetros de mercúrio sistema
Fortin e 11 aneróides, bússolas, podômetros, diversos instrumentos
meteorológicos, câmaras fotográficas com o material de revelação e uma pequena
oficina de aparelhos mecânicos destinados ao conserto dos instrumentos que
viessem a sofrer algum acidente.
(*) Renato Alves – Fotos:
Arquivo Público do DF – Acácio Pinheiro/CB/D.A.Press – Correio Brazsiliense