Atahualpa
Schmitz, o dono do asfalto. Aos 93 anos, o engenheiro, que foi responsável pela
construção da pista do aeroporto e pela cobertura asfáltica de boa parte da
capital, lança livro contando suas sagas no mundo candango. Atahualpa
coordenou as obras do aeroporto de Brasília, nos primeiros tempos da nova
capital / Fotos: Arquivo pessoal/Atahualpa Schmitz
Um dos primeiros sujeitos a pisar no chão vermelho
de Brasília foi o engenheiro Atahualpa Schmitz Prego. Atualmente com 93 anos e
vivendo em um casarão no Alto da Boa Vista, no Rio de Janeiro, sua terra natal,
ele conversou por telefone com a reportagem da Agência Brasília. Conta que
chegou aqui “no susto”, em outubro de 1956, depois de saber que a empresa na
qual trabalhava, a mítica Metropolitana, havia sido contratada para “uns
serviços” num lugar inóspito e distante do litoral. Enfim, longe de tudo.
Parecia até sinopse do romance Coração das Trevas, de Joseph
Conrad. Mas não tinha nada a ver com ficção.
“De cara, engenheiros experientes da firma
recusaram a proposta; aceitei, depois de muita insistência do chefe”, lembra
Atahualpa. “Cheguei a Brasília 20 dias depois da primeira viagem de Juscelino
[Kubitschek] à região. Era um cerradão danado. Fui com a condição de levar
mulher e filhos, que eram pequenos. Ela [a esposa] era muito prática e
corajosa, me ajudou aguentar a dureza do começo”.
Engenheiro especialista em malha asfáltica da
Companhia Metropolitana de Construção – perita em obras de terraplanagem e
pavimentação, com sede no Rio de Janeiro –, ele trouxe na bagagem 31 anos de
vida e a experiência de mais de 300 mil metros de estradas pavimentadas pelo
país. A primeira missão abraçada já foi épica: construir a pista do aeroporto.
Acabou fazendo tudo, inclusive a estação provisória de passageiros, toda de
tábuas.
“Construímos a pista, o pátio, o estacionamento, o
terminal de abastecimento, toda parte norte do aeroporto, que ficou com 3.300
metros por 46 metros, uma média expressiva, mais o prédio da estação”, enumera.
Sob seu comando, lembra, labutavam aproximadamente de 60 operários. “Era um
bocado de gente que trabalhava em máquinas e nas obras. A pista, que tinha 67
cm de espessura, até hoje está boa”.
Cheguei a
Brasília 20 dias depois da primeira viagem de Juscelino à região. Era um
cerradão danado. (Atahualpa Schmitz Prego, engenheiro)
Essas e outras dezenas de histórias acabam de ser
reunidas num livro com mais de três mil páginas, intitulado Entrelinhas
da Construção – Brasília. A obra, que será lançada em cinco volumes, estará
disponível na internet, via loja virtual, e descreve, com a riqueza de detalhes
e as delícias das memórias de um verdadeiro desbravador, as aventuras de mais
de uma década vividas por aqui. “Até o momento, já temos as duas
primeiras edições prontas”, antecipa o pioneiro. “Gosto muito de Brasília, eu a
vi crescendo”, comenta, saudoso.
Salvando Leonel Brizola e JK: Momentos
tragicômicos, heroicos e marcantes dessas sagas candangas, Atahualpa coleciona
aos montes. Certa vez, andando de jipe pela cabeceira da pista do aeroporto,
viu um avião fazendo pouso de emergência, raspando o chão, entre labaredas de
fogo. Logo desembarca um assustado Leonel Brizola (à época, governador do Rio
Grande do Sul), prontamente levado por ele a um hospital. Em outra ocasião,
para receber o avião de Juscelino Kubitschek, o engenheiro ajudou a iluminar a
pista do aeroporto com improvisadas buchas de balão, que foram acesas com
estopas lambuzadas de graxa e sebo de carneiro. “Ainda levei uma espinafrada
dele, porque o aeroporto não estava pronto”, diverte-se.
Mas a construção da pista do aeroporto e de sua
primeira sede para passageiros seria só a ponta do iceberg da contribuição que
esse pioneiro de primeira ordem deu à cidade. Dos primeiros acampamentos da
empresa Metropolitana que montou, na antiga Cidade Livre, nasceu o Núcleo
Bandeirante. Também ajudou a escavar o cascalho para a construção do Catetinho,
o palácio de tábua, primeira morada de JK em Brasília. Quando riscaram no chão
do Cerrado o marco zero de onde brotaria a cidade, lá estava ele.
Mas nada se compara à base do primeiro asfalto que
cobriu as vias urbanas desenhadas por Lucio Costa para o Plano Piloto. Para
esse projeto, Atahualpa desenvolveu rigorosos estudos do terreno, sendo o
primeiro a implantar por aqui a técnica de preparo do solo e revestimento. Tudo
foi realizado em um laboratório montado na Companhia Urbanizadora da Nova
Capital do Brasil (Novacap) –, da qual ele chegou a ser presidente,
por um curto período, em 1962.
“Revirei essa terra toda, formei centenas de
fiscais de pista especializados em geotécnica”, relembra. “Fiz muita coisa na
zona sul da cidade – as tesourinhas, os pontilhões que passam por cima delas.
Não gostava, era muito chato e cansativo, mas o Jango [João Goulart, então
presidente] me pediu para segurar as pontas até ele indicar alguém
politicamente.” Atahualpa também esteve à frente dos trabalhos de pavimentação
do Lago Norte, de algumas estradas-parques e de trechos das rodovias BR 060 e
070.
Revirei essa
terra toda, formei centenas de fiscais de pista especializados em geotécnica
Sobrinho de Atahualpa Schmitz, , o jornalista,
sociólogo, cineasta e professor de cinema Sérgio Moriconi acaba de gravar
depoimentos do tio para utilizar em um documentário. O projeto, ainda em fase
bem embrionária, assim como os livros publicados pelo engenheiro pioneiro, vai
ajudar a eternizar os feitos de um homem que teve sua vida e alma misturadas ao
cascalho batido e ao piche negro que besuntou os milhares de quilômetros do
asfalto da nossa cidade. “É uma figura incrível, importante para a
história de Brasília, e merece ter sua rica trajetória e relação com a cidade
resgatadas”, defende Moriconi.
Por Lúcio Flávio - Agência Brasília