É tudo
tão bonito no tempo da seca que nem dá vontade de morrer. A estranha cidade
fica muito linda nos meses sem chuva. Mas também muito má: já matou de uma só
vez mais de 40 homens, pretos e brancos. (Por Conceição Freitas)
O ar
denso, a umidade baixa, o sol avassalador, os imensos campos abertos, a soma
inclemente de desatinos da natureza matou mais de 40 homens, entre pretos e
brancos, em setembro de 1722, quando Anhanguera, o bandeirante paulista, subiu
o Planalto Central em busca de ouro para explorar e índios para escravizar.
Os
bandeirantes iam morrendo, um a um, de desidratação, insolação e desnutrição,
como descreve Paulo Bertran em “História da Terra e do Homem do Planalto
Central”. O historiador estimou que Bartolomeu Bueno da Silva, chefe da
expedição, perdeu pelo menos um terço de seus homens.
As grandes chapadas
goianas respondiam, com a seca silenciosa e devastadora, à aproximação das
bandeiras e seu rastro de usurpação do ouro e genocídio de índios.
Quase três
séculos depois, índios e ouro já não há, uma civilização surgiu entre chapadas,
e agosto e setembro seguem implacáveis. As vastidões de cerrado foram
recobertas por uma esquisita cidade geométrica que se desdobra quase colada ao
chão. E toda ela se transforma, todos os anos, nos mesmos meses, num jardim de
desconcertante beleza.
Na inesperada cidade brotam, nos agostos e nos
setembros, flores amarelas, brancas, vermelhas, roxas de espécies várias,
embora os ipês tenham ampla soberania sobre as demais tamanha a intensidade das
cores e a floração absoluta. (Não fica uma folha. Todas caem).
Rente ao
chão, sobre a grama cinzenta, surge um manto de nuvens esvoaçantes. São as
painas tão caras aos cerratenses de antes. Com elas, eles faziam colchões e
travesseiros, coisas de amaciar o corpo e amolecer o espírito. É garbosa, quase
amazônica, a paineira e tem um tronco rotundo que nem uma barriguda, nome que
os antigos lhe davam.
Seriam
flores as painas, mas são parte dos frutos. Têm afetuosa função: recobrem as
sementes e assim, cobertas de asas, aterrissam no chão. Embora parente próxima
do algodão, a paina não serve para fiar tecidos, por ser mais curta e delicada.
Contam-se perto de 60 mil paineiras na cidade — multidão que se concentra no
Setor Policial Sul, no Eixão, próximo à Torre de Tevê, às margens da Epia Sul.
Mas há delas por muitos outros lugares. Por serem espécies de rápido
crescimento e copa frondosa, foram usadas largamente no começo da arborização
de Brasília. Éramos uma cidade açoitada pelo sol. As barrigudas, generosamente,
abriram-se em copas para nos proteger da crueza solar.
A seca de
agosto e setembro tem o encanto implacável dos desertos. Algumas espécies
desenvolveram uma estratégia de sobrevivência: livram-se de todas as folhas,
como se estivessem mortas. Estão, na verdade, concentradas em economizar
energia e buscar água nos veios subterrâneos. Ficam nuas e lindas, como
esqueletos de árvores em concreto — perfeitas, portanto, para a enigmática
cidade.
As folhas abandonadas não vão embora. Ficam crespas, crocantes e,
semoventes, recobrem as calçadas, o asfalto, os jardins, os gramados. Voam
baixinho, cantam e dançam embaladas pelo vento.
É tudo tão bonito que nem dá
vontade de morrer.
Por
Conceição Freitas – Fotos: Igo Estrela – Vinícius Santa Rosa – Michael Melo –
André Borges – Daniel Ferreira – Hugo Barreto – Metrópoles