Representatividade
aqui e lá fora. Nascida em Ceilândia, a professora de francês Thânisia Cruz
enfrentou a crueldade do racismo ainda na adolescência. Em meio às lutas,
envolveu-se em projetos sociais e representou o Brasil em evento internacional
sobre direitos humanos
“Os passos das mulheres negras vêm de muito longe. Para me tornar o que sou hoje, precisei da minha mãe, das minhas avós e de mulheres intelectuais negras. Agora, meu objetivo é ampliar isso para a vida de outras pessoas.” A luta contra o racismo e o preconceito existe na vida da professora de francês Thânisia Cruz, 27 anos, desde a infância. Nascida em Ceilândia, filha de mineiros e integrante de uma família predominantemente negra, ela considera o lar “um verdadeiro quilombo afetivo”. Foi nesse meio que aprendeu a importância da educação e a paixão por educar. Hoje, com toda base familiar e profissional, espalha mensagens de conscientização por onde passa.
Formada em
letras-francês pela Universidade de Brasília (UnB), foi uma das poucas negras
que conseguiram concluir o curso e seguir carreira. Para ela, na capital ainda
tem poucos professores de língua francesa, em especial negros. Ela leciona o
idioma no Centro Interescolar de Línguas (CIL) da Asa Sul e compartilha a
rotina e as dificuldades com seis amigas, também negras e formadas no mesmo
curso.
Os pais de
Thânisia chegaram a Brasília ainda no início da construção da nova capital. O
pai veio com o avô trabalhar como comerciante. A mãe, para morar com uma das
irmãs, que já estava por aqui havia um tempo. Ela se lembra de uma infância
tranquila com os quatro irmãos pelas ruas de Ceilândia. “A cidade nos abraçou.
Tenho ótimas lembranças daquele tempo.” Quando pequena, uma das tias abriu o
primeiro empreendimento da família, uma escola de ensino infantil. “Na época,
muita gente foi contra. Pediram para ela fechar, diziam que era um sonho que
não daria certo”, recorda.
Determinada, a
tia manteve a instituição. “Foi o primeiro negócio educacional preto. Lá, fui
blindada do racismo. Eu me sentia bem, porque era uma escola para filhos da
comunidade. Sou fruto de um projeto social criado dentro daquela escola. A
gente tinha as aulas regulares e, no turno contrário, tinha xadrez, capoeira,
hortas, brincadeiras. E eu entrei na UnB como resultado desses projetos”,
ressalta.
Na
adolescência, foi matriculada em uma escola da Asa Sul e passou a enfrentar o
racismo. Thânisia lembra que, certa vez, ela e outra colega foram escolhidas
por um professor de exatas para serem usadas como exemplo durante uma aula. A
dupla foi surpreendida por um episódio doloroso. “Ele chamou as duas únicas
negras da turma e disse que não tínhamos conhecimento suficiente para estar
ali”, relembra.
À época, os
pais já eram servidores públicos — a mãe, professora; o pai, merendeiro. A
filha pediu para ser transferida para outro colégio. Passou por um em Samambaia
antes de chegar ao Centro de Ensino Médio Ave Branca (Cemab), em Taguatinga.
Ali, entendeu que poderia entrar na UnB. “Naquela escola, vi que as pessoas
eram iguais a mim e às pessoas da minha rua. O jeito de se vestir era o mesmo.
A música era a mesma que eu ouvia com meus irmãos. O rap era presente ali. É um
estilo que sempre fez parte da minha vida”, conta.
No terceiro
ano do ensino médio, entendeu sobre políticas de cotas e prestou vestibular. No
mesmo ano, iniciou o curso de francês no CIL, e uma professora a orientou a
cursar letras-francês. “É uma profissão que sempre tem emprego, mas ainda são
poucos professores nessa área. Eu não deveria ser a única professora preta por
onde vou, mas infelizmente ainda é assim”, relata Thânisia.
Representatividade: Parte de uma família de educadores, a professora aprendeu desde o berço
o valor dos estudos e do trabalho. No estado de origem, Minas Gerais, os pais
não tiveram tantas oportunidades. Aos cinco filhos, proporcionaram o que estava
ao alcance. Por parte do pai, a influência musical também fez parte de seu
desenvolvimento.
Thânisia fez
bacharelado, licenciatura e, hoje, é mestranda na UnB. A constante procura por
instrução resultou no envolvimento em projetos sociais. Para ela, essa
necessidade surgiu da busca de autoconhecimento. Desde que conheceu a Lei nº
10.639/2003 (leia Saiba mais), ficou inquieta com a escassez de autores negros
estudados nas escolas e universidade. O trabalho voltado para consciência negra
começou com um projeto de iniciação científica sobre violência de gênero e
outro sobre os direitos das mulheres.
Começou a
participar do Programa Afroatitude, que consiste em atividades destinadas a
negros ingressantes na universidade, como forma de acolhê-los e fortalecer sua
identidade ética e cultural. Também foi convidada a trabalhar na Secretaria de
Igualdade Racial do DF e participou de debates de outros movimentos, como da
Articulação Nacional de Negras Jovens Feministas (ANFJ), que promove noções de
autonomia e empoderamento.
A partir desses
trabalhos, novas portas foram se abrindo. No início deste ano, como
colaboradora da Organização das Nações Unidas (ONU), esteve em Nova York, nos
Estados Unidos, para um evento pela defesa dos direitos humanos. “Eu gostaria
de não ser uma história única. A expectativa é de que pessoas como eu possam
fazer e ser o que quiserem. É uma máxima que eu compartilho com meus alunos.
Temos que ampliar nossas vozes, não só a partir das mazelas”, destaca a jovem.
Saiba mais: Ensino obrigatório - A Lei nº 10.639/2003 estabelece
a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afrobrasileiras dentro das
disciplinas que fazem parte das grades curriculares dos ensinos fundamental e
médio. Além disso, estabelece 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra no
calendário escolar.
"Os passos das
mulheres negras vêm de muito longe. Para me tornar o que sou hoje, precisei da
minha mãe, minhas avós e de mulheres intelectuais negras” "Temos
que ampliar nossas vozes, não só a partir da mazelas”
Especial: A
série Histórias de consciência presta homenagem a mulheres e homens negros que
ajudam a construir uma Brasília justa, tolerante e plural. Todos os perfis
deste especial e outras matérias sobre o tema podem ser lidos no site : https://bit.ly/33ZXVcg ,
Por : Caroline Cintra - Foto: Vinicius Cardoso/CB/Press - Correio Braziliense