O goiano que, sozinho, fez um dicionário diferente e apaixonante. A
história de um livro de capa preta que o historiador Sérgio Buarque de
Hollanda, pouco antes de morrer, deu ao filho Chico. (*por Conceição Freitas)
Pouco antes de morrer, o historiador Sérgio Buarque de
Hollanda chamou um dos filhos ao escritório e entregou a ele um
livro de capa preta. Chico nunca havia visto aquele volume, ficava meio
escondido perto dos cinco volumes do dicionário Caldas Aulete.
“– Isso pode te servir, foi mais ou menos o que ele então me disse, no
seu falar meio grunhido. Era como se ele, cansado, me passasse um bastão que de
alguma forma eu deveria levar adiante.”
Desde então, o volume preto ajudou Chico “no acabamento de romances e
letras de canções”. E não apenas. O rapaz de olhos apaixonantes passava horas
folheando à toa o livro que o pai lhe dera. Chico Buarque de Hollanda conta
essa história na apresentação do “Dicionário Analógico da Língua
Portuguesa – ideias afins/thesaurus” (Editor Lexikon).
Eu nunca tinha ouvido falar de dicionário analógico até ler, solta em
algum lugar, essa crônica do Chico, alguns anos
atrás.
Não é um dicionário de significados, como o “Houaiss”, ou de
sinônimos e antônimos. Também não é um dicionário etimológico, que nos dá a
origem da palavra. É um dicionário complicado, aparentemente confuso, difícil
de entender – é preciso insistência e paciência até se acostumar ao modo como
ele funciona. E insistência e paciência para encontrar o que busca. Quem vive
das palavras escritas vai se apaixonar irremediavelmente, mesmo que o amado não
facilite a aproximação.
É um dicionário de ideias afins. E, sem intenção de trocadilho, começa
pelo fim. Em vez de eu ter uma palavra – amor – e buscar-lhe o sentido, eu
tenho o sentido, sei o que quero dizer, mas quero uma palavra que não encontro
dentro de mim nem no dicionário de significados nem no de sinônimo. O
dicionário analógico, “a partir de um contexto de possíveis significados,
oferece uma nuvem de palavras em torno desse significado, ou seja, palavras
análogas num maior ou menor grau de proximidade e exatidão, para que nessa
nuvem possamos achar a palavra – ou expressão que melhor nos convém, em qualquer
de suas mais prováveis funções gramaticais”. (Aspas retiradas do texto de
apresentação da 2ª edição).
Um exemplo: a palavra amor.
O dicionário analógico vai me oferecer substantivos, adjetivos,
expressões que abarcam a ideia de amor nos seus mais variados modos de existir.
“Carinho, idolatria, afeto, amoricos, amorosidade, inclinação, dileção,
predileção, preferência, simpatia, estremecimento, benquerença, afeição,
admiração, apego, aferro, constância, idílio, derriço, derretimento, idiopatia,
ternura, intimidade, conchego.”
Algumas expressões eruditas e populares: “Beber os ares/os ventos por;
alucinar-se, desvairar-se, arder por alguém, morrer por, amoriscar-se, embeiçar
com alguém, queimar-se nos olhos de, abajoujar-se, enfeitiçar, abrasar de amor,
prender o coração, servir de pau de cabeleira, ser a tampa da panela, tornar-se
o mimoso de”.
Para os brasilienses, que ocupamos um quadrado dentro de Goiás, o
Dicionário Analógico tem um significado afetivo, por assim dizer. Quem o fez
foi um goiano nascido na Cidade de Goiás quando ainda era capital do Estado e
se chamava Vila Boa de Goyaz. Francisco Ferreira dos Santos Azevedo
(1875/1942) foi um daqueles humanos de feitos inacreditáveis. Num tempo em que
não havia internet, numa cidade distante das grandes bibliotecas, deitado numa
rede na sala, tendo um papelão como prancheta, livros, papel e lápis, ele
fichava as palavras com sentidos afins.
O dicionário só foi publicado pela primeira vez em 1950, oito anos
depois da morte do professor Ferreira, como era chamado. Dava aulas de inglês,
geografia, astronomia, mecânica e matemática. Aprendeu inglês, francês,
italiano e alemão com ingleses, franceses, italianos e um alemão, todos
moradores de Vila Boa de Goyaz, alguns deles missionários.
Professor Ferreira foi também jornalista, historiador, agrimensor,
diretor de escola e atuou em cargos públicos. Escreveu e publicou livros sobre
a data gregoriana do descobrimento do Brasil, um anuário histórico, geográfico
e descritivo do Estado de Goiás e o “Grande dicionário analítico da língua
portuguesa”, nunca publicado. Teve 11 filhos e era considerado um dos homens
mais elegantes da sociedade vilaboense.
O Dicionário Analógico do homem elegante está na 3ª edição, revista e
atualizada. Um bom presente de Natal – “nascedouro, nascimento, nascença, ter
lume nos olhos, pulsar o coração, sair à luz, vital, vivificante, dar a vida/a
existência a alguém, animar, aviventar, vivificar, vitalizar”.
*Por Conceição Freitas - Foto/Arte: Gui Prímola - Metrópoles