“Pensam que todos nós, negros, somos empregadas ou
motoristas”, diz desembargadora do TJDFT. Recém-empossada no Tribunal de
Justiça do DF, Maria Ivatônia Barbosa dos Santos contou já ter sido vítima de
preconceito racial. (*Por Manoela Alcântara)
Após 59 anos de história, o Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) tem a primeira mulher negra a
vestir a toga de desembargadora. Nascida em Arraias (TO), cidade do interior,
de família humilde, formada pela rede pública de ensino municipal, filha de pai
professor e mãe dona de casa, Maria Ivatônia Barbosa dos
Santos passou a compor o pleno da Corte e atuará nas decisões de
segunda instância.
Mas a vida dedicada aos estudos e à carreira de
servidora do Estado não fizeram a magistrada e ex-delegada da Polícia Civil de Goiás
evitar situações enfrentadas por boa parte da população do país: o racismo e o
preconceito social.
“O racismo, que nós teimamos em não entender e não aceitar, é
disfarçado. Sempre pensam que nós, negras, somos empregadas. No caso dos
homens, pensam que são motoristas ou seguranças”, afirmou ao Metrópoles.
Na noite de quinta-feira (12/12/2019), Maria
Ivatônia foi promovida do cargo de juíza de direito substituta de 2º grau ao
de desembargadora, em cerimônia conduzida pelo presidente do
TJDFT, Romão Cícero de Oliveira.
Reconhecida pelo trabalho, formação, competência e
seriedade dentro da Corte, a magistrada relatou que até hoje passa por momentos
de discriminação, e que negar a existência do racismo é o mesmo que reforçá-lo.
Quando morava no interior do
Tocantins, ainda pequena e na família com sete irmãos, Maria Ivatônia não sabia
o que era preconceito. As primeiras situações de discriminação ocorreram quando
se mudou para Goiânia, onde cursou o ensino superior. “Na cidade grande você
percebe [o racismo]”, disse.
Confira a entrevista:
Como foi a trajetória até o cargo de
desembargadora?Tive uma infância simples. Estudei na escola municipal, pública.
Depois, no único colégio de ensino médio que havia na cidade, das Irmãs
Dominicanas. Mais tarde nos mudamos para Goiânia, onde cursei faculdade. A
infância simples me preparou para a vida com muita propriedade.
No início, na minha cidade pequena, não percebia
muito a discriminação, porque todo mundo é muito próximo, todo mundo é parente.
Essa dificuldade, o racismo que nós teimamos em não entender e não aceitar, é
disfarçado. Quando se vai para a cidade grande, você percebe. Sempre pensam que
nós, negras, somos empregadas. No caso dos homens, pensam que são motoristas ou
seguranças. Temos que fazer valer o nosso espaço.
A senhora é a primeira desembargadora negra do
TJDFT. Como vê este momento? É uma alegria grande ser promovida a
desembargadora, tomar posse e poder dedicar isso a todas as meninas e meninos,
negros e negras deste Brasil continental, que tem 56% de população negra e tão
pouca gente em lugares de projeção. Esse é o recado que queria dar: dizer que
nós podemos e devemos ocupar nosso espaço.
Como será a atuação no cargo de
desembargadora? Pretendo continuar a atuar como sempre: com a Justiça da
forma que tem de ser feita. O princípio da igualdade é tratar igualmente os
iguais e desigualmente os diferentes na medida de suas igualdades e
desigualdades. Me perguntam sempre: “A senhora é contra o merecimento?”. Eu
respondo: “Não”. Mas merecimento pressupõe, necessariamente, que nós estejamos
em absoluta igualdade de condições. Não podemos simplesmente pegar duas pessoas
que estão desiguais e compará-las, igualá-las. A Justiça precisa fazer essa
diferenciação.
A senhora já sofreu algum tipo de
preconceito? Não neste tribunal. O TJDFT não tem essa visão
preconceituosa. O preconceito velado está na sociedade. Vou dar um exemplo: em
um restaurante no Rio de Janeiro, num hotel cinco estrelas, cheguei e desci do
táxi logo após meu amigo e colega loiro descer. O segurança abriu a porta para
ele e disse: “Pois não, doutor?”. Eu cheguei em seguida, o mesmo segurança se
postou na minha frente e disse: “A senhora deseja o quê?”. Respondi: “Que você
me conduza até a piscina do hotel ou até o gerente, que irei reclamar de você
“São situações que a gente
convive. Quando estou com menos paciência, chego falando outra língua e pensam
que sou uma estrangeira rica. Não se trata de desabafo furioso, é só uma
constatação. Temos que entender que o fato de negar o racismo não significa que
ele não exista. Parece que é o contrário, faz com que ele cresça.”
Formação: Maria
Ivatônia se graduou em direito pela Universidade Católica de Goiás (UCG) e não
parou mais de estudar. A magistrada tem pós-graduação em direito constitucional
eleitoral pela Universidade de Brasília (UnB); em direito penal e direito
administrativo pela Universidade Católica de Brasília; e em direito penal,
direito processual penal e direito constitucional pela UCG.
Ocupou o cargo de delegada da Polícia Civil de
Goiás e coordenou a Central de Guarda de Objetos de Crime (Cegoc), tendo sido
condecorada com a Medalha do Mérito Policial Civil Juscelino Kubitschek de
Oliveira pelos relevantes serviços prestados à frente da Cegoc; entre outras
atividades.
Ela ingressou na magistratura do Distrito Federal
em 7 de maio de 1993, como juíza de direito substituta. Em fevereiro de 1996,
foi promovida a juíza de direito e, em abril de 2014, tomou posse no cargo de
juíza de direito substituta de 2º grau, que exercia até a quinta-feira
(12/12/2019).
A magistrada atuou na 2ª Vara de Entorpecentes e
Contravenções Penais do DF. Foi titular da Auditoria Militar e da 2ª Vara
Criminal de Taguatinga, além de diretora do Fórum de Taguatinga e do Fórum
Desembargador José Júlio Leal Fagundes.
No Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal
(TRE-DF), a magistrada ocupou os cargos de desembargadora eleitoral titular e
substituta, bem como o de ouvidora, e foi condecorada com a medalha do Mérito
Eleitoral do DF na classe jurista. Além disso, foi coordenadora da Revista da
Escola da Magistratura do Distrito Federal.
*Por Manoela Alcântara - Fotos: André Borges - Metrópoles