Em Brasília, chover é verbo — chove, choveu, chovemos. Aqui, a gente brinca de "está chovendo aí?" Aqui vemos tudo acontecer: as nuvens se juntando, estufando, escurecendo, descendo, (*Por Conceição Freitas)
Quando a cidade era apenas um vermelho-ferrugem ferindo o cerrado, as duas estações de Brasília eram muito bem delimitadas: seis meses de seca, seis meses de chuva. Chovia em todos os tempos e modos verbais — chove, choveu, choverá, chovia, chovera, choveremos, chovíamos, chovestes.
Pode-se dizer que o concreto armado da capital moderna nasceu da lama. Deve haver vestígios dela em todas as estruturas de cimento e brita que sustentam os três poderes, e nem me refiro ao lamaçal metafórico.
Queria ter estado aqui nos tempos da chuva absoluta, embora ainda esteja. Porque nem o concreto armado (e a ganância e o mau-gosto dos empreiteiros) conseguiu derrotar o espetáculo da chuva no Planalto Central.
Brasília é como um grande telescópio urbano plantado no deserto. A chuva não cai no meio da rua, na janela de casa, na entrada do prédio, na calçada. Aqui, a chuva cai como caiu pela primeira vez na Terra. Vem do céu, escorre das nuvens em quilômetros de quedas d’água como cachoeiras deambulantes.
Lucio Costa: Lucio Costa não deve ter visto nenhuma chuva no Planalto Central antes de desenhar seu plano-piloto. Mas teve o olhar clínico do urbanista para perceber, nas plantas aerofotogramétricas, que a distância entre a Terra e o céu, na futura capital, era imensurável.
Tanto soube que projetou uma cidade de joelhos para o cosmos. Volumes compactos para reverenciar o universo — e, nele, a chuva, a cosmogonia líquida que nos dá a vida.
O brasiliense adora brincar de “está chovendo aí? Aqui ainda não”. Em Samambaia caiu uns pingos. Tem chuva vindo de Sobradinho. Aqui, vemos tudo acontecer: as nuvens se juntando, estufando, escurecendo, descendo. A cortina de chuva ao longe e o Sol em nós, fazendo de conta que não está nem aí.
Woody Allen: Woody Allen bem que podia vir fazer um filme de chuva em Brasília. Ele ia descobrir que não sabe nada sobre as águas que caem do céu — embora as ame tanto que quase toda a obra dele é chuvosa, como a última, Um dia de chuva em Nova York ou Meia-noite em Paris.
Ele diz que gosta de chuva porque nela a luz é mais bonita, porque nesses dias “as pessoas pensam mais a partir do seu interior, da sua alma”. Não deixa de ser verdade, WA, mas numa cidade muito distante e muito singular, assentada num domo dentro de um anel de chapadas, nessa cidade a luz da chuva é ainda mais bonita e não é apenas uma, é uma paleta de cores, uma Pantone exclusivamente candanga, com todos os tons de cinza que a natureza já pôde produzir. E com pinceladas de alaranjados os mais inacreditáveis.
Aqui, a chuva é uma emanação divina.
Woody Allen disse também, na mesma entrevista, que “é caro rodar com chuva”. Se não chove, tem de fazer chover de mentira. Aqui, WA, é impossível inventar um aguaceiro. Chover é tão inteiro, tão completo, tão verdadeiro que não dá pra fabricar uma chuva com tanque de água e irrigador de jardim. Chover aqui é verbo no infinitivo.
Em Brasília, a chuva não é substantivo, é verbo. Não é fenômeno meteorológico, é epifania cósmica. Aqui, relâmpago não é um vago clarão entre edifícios ou atrás das montanhas. Aqui, o relâmpago fende o céu como um meteoro de fogo. E o vemos por inteiro, do pé à cabeça. Até o trovão troveja com mais valentia nessa estranha cidade-cósmica.
(*) Conceição Freitas - Foto: Igo Estrela - Metrópoles
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