Tudo
acontece na calçada mais importante de Brasília. Entre o Conic e o Conjunto,
passa um Brasil divertido, mal-educado, criativo, cercado de monumentos que
parecem feitos para outro país. (*Por Conceição Freitas)
Tem menos de um quilômetro, 760
metros, 1.154 passos, a mais importante calçada de Brasília, que vai da
extremidade norte do Conjunto Nacional ao extremo sul do Conic. Mais
importante, mais movimentada e mais democrática. Quando os fiscais da Agefis não
imperam sobre o desemprego, ela fica ainda mais importante, mais
movimentada e mais democrática.
Nos últimos dias, ela tem estado assim.
Na sexta-feira passada, uma ambulante me chamou:
— Vem cá, tenho uma tiara pra você, pra tirar esse
cabelo partido no meio, essa cara de Madalena arrependida.
Não sabia se partia pra cima ou se ria. Segui
adiante – vou escrever uma crônica.
Lá na frente, um homem deu um passo na minha
direção, tocou levemente os dedos no meu antebraço e disse:
— Tá passeando hoje, mulher? E me ofereceu um
panfleto.
O outro vendia cerveja e pinga em dose.
— Olha a pinga, olha a cerveja, madame, hoje é
sexta, olha a pinga, olha a cerveja.
Assim somos, os brasileiros. E o
Brasil percorre os 780 metros da calçada ou estica o pano e sobre ele coloca
mochilas, óculos, guarda-chuva, calcinha, cueca, meia, sutiã, bermuda,
garrafadas milagrosas, tudo para celular, cosméticos, tênis, sandália, um
Conjunto Nacional deitado na passarela sobre o cruzamento dos Eixos.
Quase chegando ao Conic, começa a abordagem do
“teste demissional e admissional, compro ouro”. Antes eram alguns, agora são
dezenas, que se esticam até as praças. É um pelotão que parece servir a um só
senhor, que faz teste para emprego e desemprego e compra joias dos
desesperados.
Perto do Conjunto Nacional, sempre há um cantor que
o shopping parece tolerar. Por alguma razão, eles se consideram donos da
calçada debaixo do pilotis e não poucas vezes retiram de lá os hippies e os
grupos musicais.
Talvez para se redimir da política
higienista, o Conjunto reformou a praça em
frente ao Teatro Nacional, projeto original de Lucio Costa e Maria
Elisa Costa. Ficou à altura do arquiteto: bancos de concreto em forma de cubos,
elegantes, discretos, concisos.
A calçada/passarela ligando a
Asa Norte à Asa Sul é um mirante horizontal suspenso. Sobrevoa
o Eixo Monumental e se abre para a escala com que Lucio Costa quis gravar a
soberania da capital de um país que, 65 anos atrás, vivia um surto de esperança.
Se tivéssemos prestado um pouco mais de atenção, se
não fôssemos tão passionais, se não precisássemos tão desesperadamente
acreditar em alguma coisa, talvez tivéssemos percebido, àquela altura, que a
escala monumental deixava um vazio invencível entre o homem e a cidade.
Nós, os que atravessamos a passarela entre o
Conjunto e o Eixo, nos sentimos demasiadamente pequenos diante da cidade que
habitamos. Como se Brasília tivesse sido feita para ela mesma, não para nós,
seus habitantes.
É uma sensação paradoxal: é bela, grandiosa, mas
está tão distante de mim quanto as estrelas, e de estrelas já são suficientes
as que estão no céu.
O Teatro Nacional, o antigo Touring (esquecida obra
de Niemeyer) são ruínas da cidade moderna. A Esplanada a leste, a Torre de TV a
oeste – por que doem?
Chovia na sexta-feira quando deixei a calçada mais
importante de Brasília. Sentado numa lata de tinta, coberto por uma capa e um
guarda-chuva, um flanelinha, Devanir, abriu um sorriso tão bonito quando pedi
pra fazer uma foto que voltei a acreditar – não sei em quê, mas a acreditar.
(*) Conceição Freitas - Fotos: Myke Sena - Metrópoles
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CRÔNICA