Um aniversário de
resistência
*Flávia Arruda
Os pioneiros
que construíram Brasília viveram grandes dificuldades. Cada um de nós, que
nascemos ou vivemos aqui, tem uma história para contar sobre a epopeia do tempo
da construção.
Meu avô
materno foi alfaiate na Cidade Livre, num barraco de madeira. Meu avô paterno
morou numa das primeiras casas de tábua de Taguatinga, onde meu pai passou a
infância. E eles contavam capítulos inesquecíveis daquela época.
Em mil dias,
brasileiros de todas as regiões do Brasil, vindos para cá com suas trouxas de
roupas, suas famílias e suas esperanças, em carrocerias de caminhão,
acreditando no sonho e na capacidade de realização do maior brasileiro da nossa
história, o presidente Juscelino Kubitschek, construíram a nova capital do
Brasil.
As
dificuldades eram muitas. Não havia estradas nem energia elétrica, os
alojamentos eram improvisados, a poeira vermelha do cerrado formava redemoinhos
como a resistir à invasão do homem, as ferramentas eram rudimentares, mas se
trabalhava dia e noite, sem parar, com determinação sem igual e com enorme
capacidade de resistência aos muitos obstáculos. Edson Porto e Gustavo Ribeiro,
dois dos primeiros médicos a chegar aqui, contavam que, numa epidemia de
diarreia, tiveram que colocar remédio no feijão dos acampamentos, pois não
havia um comprimido para cada trabalhador.
A improvisação
e a criatividade competiam com a tenacidade dos que dobravam turnos, sem
descanso, para cumprir prazos e vencer os obstáculos que, em situação normal,
seriam intransponíveis.
E, por causa
dessa vontade inabalável, construiu-se Brasília e, com ela, mudou-se o mapa
econômico e social do Brasil. A partir de Brasília, redescobriu-se o Brasil,
que antes era um país litorâneo. Brasília integrou as regiões e permitiu que
conquistássemos o nosso território, abrindo as portas para a produtividade do
cerrado, as belezas do pantanal e da Amazônia, tendo como ponto central uma
capital moderna e equidistante de todas as regiões.
Mais ainda:
Brasília passou a ser a capital de todos os brasileiros, integrando nordestinos
e gaúchos, mineiros e amazonenses, cariocas e goianos, diferentes culturas,
costumes, culinárias. E passou a ser o berço de nova civilização.
Aqueles brasileiros
humildes e fortes, que acreditaram no sonho de JK, construíram a mais moderna
cidade do mundo, que revolucionou o conceito da arquitetura e do urbanismo
mundial, tirou o nosso complexo de vira-lata e fez o Brasil ser respeitado no
mundo inteiro.
Pois agora
somos obrigados, por uma pandemia, a comemorar o aniversário de 60 anos de
Brasília sem abraços, sem festas e sem comemorações coletivas, com o comércio
fechado e com o medo e as incertezas a rondar as cabeças, com os hospitais
cheios e com perdas de pessoas queridas próximas de nós.
Vejo o
sofrimento das pessoas e sinto as dificuldades dos mais humildes, dos
empresários, dos desempregados, dos autônomos, e vejo o esforço sobre-humano
dos que não podem parar, os profissionais da saúde, da assistência social, da
polícia, da limpeza urbana, do jornalismo, dos serviços públicos fundamentais
como água e esgoto. E, nesse mapa assustador, me ocorreu lembrar a construção
da cidade, os obstáculos vividos pelos pioneiros e tirar deles a tenacidade e a
coragem para vencer esses tempos difíceis.
Com fé em
Deus, trabalho, compreensão e solidariedade, haveremos de passar os sacrifícios
e ainda seremos capazes de tirar as lições que o sofrimento traz para
reconstruirmos nossa convivência urbana.
E certamente
saberemos dar mais valor a cada abraço, a cada aperto de mão, a cada festa de
aniversário. Saberemos dar mais valor aos que estão se sacrificando por nós. E,
muito provavelmente, até nossos valores estarão sendo revistos e, com isso,
nossas prioridades, as individuais e as coletivas.
Brasília, aos
60 anos, faz do seu aniversário uma provação e uma lição. Isso nos convida a
uma reverência aos que a construíram e nos legaram a lição de determinação para
vencer os momentos mais difíceis da vida. Tudo passa. Isso também vai passar.
(*) Flávia Arruda - Deputada federal (PL-DF)
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BRASÍLIA 60 ANOS