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A TRAGÉDIA CARTESIANA (Coluna Victor Dornas)


O governo estadunidense anuncia, peremptoriamente, o rompimento com a organização mundial da saúde. A União Europeia pede que Trump reconsidere, pois trata-se do país que mais repassa dinheiro ao órgão internacional. O motivo? A China. Em tempos de pandemia, onde a palavra ciência se torna um ativo ainda mais valioso e por isso desvirtuado também, convém lembrarmos de onde veio essa tal ciência. Ela veio, sem dúvida alguma, do sentimento de angústia humana, bem parecido com aquilo que muitos de nós sentimos agora. Quem está certo? Trump? A China? A OMS? Bolsonaro? Globo? CNN? Essa angústia está certa.

Por Victor Dornas

Quando aprendemos sobre René Descartes, o criador do modelo cartesiano, isto é, de um método cético de estabelecimento do conhecimento, numa época em que o dogma era, supostamente, ainda mais sagrado, os professores ensinam que o filósofo se deparava com pessoas que usavam muito o método da autoridade e por isso decidiu criar seu próprio modelo. O método retórico da autoridade é quando alguém se escora na produção de autores famosos para fingir que ele próprio detém vasto conhecimento. Aquele espertinho que vive citando os outros.

Isso se percebe, com muita frequência, no mundo acadêmico brasileiro atual onde a produção de papel é vasta, mas a produção de tecnologia de fato é baixa. Muitos dizem, acertadamente, que falta investimento, contudo a proliferação descontrolada de gente que publica sem ter nada a dizer dificulta, inclusive, a identificação, por um investidor, do joio do trigo.

Não foi isso, porém, que mais motivou Descartes a criar o modelo cartesiano, isto é, a maneira correta de duvidar de quase tudo. Ele era uma pessoa que convivia com a angústia de quem quer saber a verdade. Na política, existe o espírito militante, que apesar de babar de raiva, não se enganem, ele está em paz. Já decidiu onde se ancorar. Há, também, o espírito desinteressado, que no fundo é cético a respeito da mudança, inclusive de si mesmo, e pouco se importa com questões políticas. É estacionário por natureza e, por isso, também está em paz. 

Há o terceiro e último tipo de espírito, que mais sofre, peleja e fracassa na virtude. O tipo angustiado, de quem quer saber a verdade. Custe o necessário, mas que se descubra tudo. Descartes era assim, angustiado. Ele não sabia quem eram os sábios, ou melhor, se sequer havia sábios. Não sabia se o Deus católico ou o protestante, ou qualquer outro era o correto e tinha medo de arder no inferno se escolhesse o enganador. Por isso, no discurso do método, Descartes parte seu ensaio mais famosos a partir da ideia da concepção de Deus. 

Quando achou que a questão estaria resolvida, adotando o Deus católico como o correto, casou-se com uma bela mulher protestante e, novamente, foi consumido pela angústia. Curiosa a reflexão daquilo que hoje é difundido com o rigor e a frieza da universalidade da técnica, isto é, a ciência, a tão defendida ciência, nasceu justamente da tragédia dos sentimentos humanos.

O problema do modelo cartesiano é que ele supõe que haverá um mínimo de conhecimento como ponto de partida para o estabelecimento da verdade. A ciência, já amadurecida, não busca mais as verdades, pois ela sabe que a dúvida é um processo constante. Ela se alimenta na destruição dos conceitos e não na manutenção dos mesmos. Mas, ainda assim, quando se estuda, por exemplo, os efeitos fotossensíveis luminosos, há toda uma bibliografia deixada como herança de nossos cientistas passados para corroborar com novos entendimentos.

O maior pesadelo da ciência política é a dificuldade de assimilar o subjetivismo do senso crítico. Isto é, se o Sol nasce todos os dias, independe de senso crítico. Mas na política, quando se tenta fazer ciência, ou seja, reunindo aquilo que universalmente verdadeiro a ponto de verificar padrões, a produção acadêmica é muito pobre. Frequentemente vemos grandes cientistas políticos que se deixam apaixonar por políticos, ou por ideologias diversas.

Quando figuras histriônicas hoje transformam a política em entretenimento, temos aí nas redes sociais um festival de informação diária, jogada quase que de forma orgânica, mas mais parecendo algo virulento. E o senso crítico, coitado, sem saber nem onde se começa. O pior de tudo, numa perspectiva cartesiana, é que nós não temos sequer as informações básicas para avaliar o problema. As informações não são apenas difusas. São também secretas.

Sabemos que Trump tem o escopo eleitoreiro. Que vírus não tem pátria e muitas das piores calamidades viróticas da história, como a febre amarela, as pestes, gripes, não começaram na China e sim na Europa e até nos Estados Unidos como no caso da espanhola que começou no estado do Kansas. Mas então podemos defender a China? Uma ditadura que entendeu a força militar da economia? Pessoas morrem de fome na guerra da economia. Devemos defender quem? O falastrão do Trump? Ou o político adversário comedido que nos bastidores promove coisa muito pior? Como estabelecer qualquer diálogo na política, se as informações são tão difíceis de se verificar, caso o nobre leitor seja o terceiro tipo de espírito, isto é, aquele que quer saber a verdade? O angustiado. 

Nessas horas, este articulista recomenda o pai da psicanálise, o sujeito que melhor entende o vício do perfeccionismo. Aquele que dissecou mais de trezentas enguias, ainda jovem, para tentar mascarar suas origens humildes num mundo acadêmico extremamente elitista. Sigmund Freud, o cientista que sofria todas as dores humanas. Freud aconselharia todo aquele indivíduo que almeja, de fato, sofrer na angústia da política, ensinando sobre o vídeo da vaidade. 

“Nós poderíamos ser muito melhores, se não quiséssemos ser tão bons.”

Independentemente daquilo que se escolha na política, convém que saibamos que não há muito espaço para a vaidade aqui. A chance de errar, cartesianamente, é quase certa.




(*) Victor Dornas - Colunista do Blog Chiquinho Dornas , fotos ilustração: Blog-Google 

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