Voto contra o
negacionismo. Ministro Gilmar Mendes, do STF,
defende que igrejas continuem fechadas na pandemia e dá bronca no
advogado-geral da União, André Mendonça. Julgamento do caso, que continua hoje,
atrai interesse do governo e acirra disputa pela próxima vaga na Corte
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou para que igrejas permaneçam fechadas durante a pandemia da covid-19. Ele é o relator de uma ação apresentada pelo PSD solicitando a suspensão de um decreto do governador de São Paulo, João Doria, que proíbe o funcionamento de templos para evitar a propagação do novo coronavírus (leia Entenda o caso). O julgamento em plenário foi marcado por fortes discursos de afago aos evangélicos pelo advogado-geral da União, André Mendonça, e pelo procurador-geral da República, Augusto Aras. Ambos disputam uma vaga na Corte, que será aberta com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello.
O julgamento prosseguirá hoje. É necessário que
pelo menos seis dos 11 ministros votem no mesmo sentido para que a decisão seja
tomada. A tendência é de que a maioria do plenário mantenha a autonomia de
estados e municípios para decidir sobre o fechamento ou não dos templos.
Primeiro a falar na sessão, Mendonça chegou a ler
versículos da Bíblia para sustentar que a abertura das igrejas é uma garantia
constitucional. Ele citou Matheus 18:20, que conclama a união de pessoas em
prol da fé. De acordo com o versículo, Deus estará presente quando estiverem
duas ou mais pessoas reunidas no nome d’Ele.
Mendonça fez apelo para que as atividades sejam
mantidas e disse que a Constituição garante a liberdade religiosa. “Não há
cristianismo sem vida comunitária, não há cristianismo sem a casa de Deus, sem
o dia do Senhor. É por isso que os verdadeiros cristãos não estão dispostos
jamais a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a
liberdade de religião e de culto”, pregou. Ele afirmou, ainda, que as medidas
restritivas a igrejas parecem contraditórias, pois o Brasil registra cenas de
“ônibus superlotados” e viagens de avião “como uma lata de sardinha”.
As declarações foram duramente rebatidas por Gilmar
Mendes. “Quando Vossa Excelência fala dos problemas dos transportes no Brasil,
especialmente no transporte coletivo, eu poderia ter entendido que Vossa Excelência
teria vindo agora para a tribuna do Supremo de uma viagem a Marte, mas
verifiquei que Vossa Excelência era ministro da Justiça e tinha
responsabilidades institucionais, inclusive de propor medidas. À União cabe
legislar sobre diretrizes nacionais de transportes”, disparou.
O magistrado ressaltou que as autoridades devem ter
responsabilidades com suas palavras e ações. “Vejo, portanto, que está havendo
um certo delírio neste contexto geral. É preciso que cada um de nós assuma a
sua responsabilidade. Isso precisa ficar muito claro. Não tentemos enganar
ninguém”, alfinetou.
Mendes criticou, também, o cunho religioso das
declarações de Mendonça e destacou que se vive a maior crise sanitária do
século, em que milhares de vidas são perdidas para a doença todos os dias. “Sob
o nefasto manto de uma catástrofe humanitária sem precedentes, aporta no STF a
legítima pretensão de se abrirem templos”, reprovou.
"Os verdadeiros cristãos não estão dispostos jamais a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto" (André Mendonça, advogado-geral da União)
A vaga no STF é alvo de disputas entre Mendonça e
Aras. Ontem, no julgamento, o procurador-geral da República defendeu o direito
“ao exercício de culto” e de religião, em um posicionamento alinhado com os
interesses do Planalto. “O direito de culto, de ir, de vir, de ficar. São todas
cláusulas pétreas previstas no artigo 5º da Constituição. A Constituição
assegura o livre exercício dos cultos religiosos”, enfatizou Aras. “Dessa
forma, decretos e atos meramente administrativos, ainda que decorrentes de uma
lei ordinária, podem ter força para ter uma subtração do previsto em uma lei
maior? Parece que não. É preciso lembrar que o Estado é laico, mas as pessoas
não são. A ciência salva vidas; a fé, também.”
Entenda o caso: Decisões conflitantes - No último sábado, o
ministro Nunes Marques, indicado ao STF pelo presidente Jair Bolsonaro,
decidiu, individualmente, pela liberação das atividades religiosas de forma
presencial. A decisão atendeu a um pedido feito, em junho do ano passado, pela
Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure). “Reconheço que o momento
é de cautela, ante o contexto pandêmico que vivenciamos. Ainda assim, e
justamente por vivermos em momentos tão difíceis, mais se faz necessário
reconhecer a essencialidade da atividade religiosa”, escreveu o ministro na
decisão.
A polêmica liminar de Nunes Marques inaugurou uma corrida ao Supremo,
com pedidos do partido Cidadania e do prefeito de Belo Horizonte, Alexandre
Kalil (PSD), contra a decisão do ministro. O mineiro chegou a ser intimado pelo
magistrado a cumprir a decisão depois de anunciar nas redes sociais que não
seguiria a ordem.
Bolsonaro defende a reabertura: O presidente Jair Bolsonaro voltou
a dizer que a pandemia da covid-19 é usada de forma política contra ele. O
chefe do Planalto também repetiu que espera que o STF mantenha a decisão de
abertura das igrejas. “Não vamos chorar o leite derramado. Estamos passando
ainda por uma pandemia, que em parte é usada politicamente não para derrotar o
vírus, mas para tentar derrubar o presidente”, disse ontem. “Eu acredito que
hoje (ontem) o Supremo vá dar uma boa resposta no tocante à abertura de
templos.”
Na contramão de Nunes Marques, dois dias depois, o ministro Gilmar
Mendes, relator de ação protocolada pelo PSD, em março, contra o decreto do
estado de São Paulo que proibiu as reuniões religiosas durante as fases mais
restritivas do plano de combate à covid-19, negou pedidos do partido e do
Conselho Nacional de Pastores do Brasil para derrubar o decreto do governo
paulista. Com as decisões conflitantes, o presidente do STF, Luiz Fux, levou o
caso para julgamento no plenário.
Saiba mais: Maioria católica - O STF não tem ministros
evangélicos, mas o presidente Jair Bolsonaro já disse que pretende mudar isso.
Dos 11 integrantes da Corte, oito são católicos: Alexandre de Moraes, Cármen
Lúcia, Dias Toffoli, Edson Fachin, Nunes Marques, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello
e Ricardo Lewandowski. Luiz Fux e Luís Roberto Barroso são judeus. Rosa Weber é
reservada sobre o tema, mas não é evangélica. O favorito para a próxima vaga no
STF é o advogado-geral da União, André Mendonça, pastor da Igreja Presbiteriana
Esperança, em Brasília. Bolsonaro conta com o apoio do eleitorado evangélico
para garantir a reeleição em 2022.
Renato Souza – Correio Braziliense