Causou surpresa às
pessoas que não trabalham com o direito o decreto do presidente Jair Bolsonaro
anulando uma condenação penal imposta pelo STF. Pode isso? Poder, pode.
Embora seja o primeiro da nossa história, provocando, por isso, alguma
desconfiança. Mas entrou no mundo jurídico com problemas de forma, eis que o
decreto foi editado menos de 24 horas depois da decisão do Supremo, sem que o
acórdão tenha transitado em julgado -- e o indulto individual (a graça) só pode
atingir penas definitivas, imodificáveis por recurso -- ; e de conteúdo, porque
a clemência concedida parece carregar natureza pessoal, ideológica, partidária,
intervencionista, desafiando princípios basilares do estado democrático de
direito, como a impessoalidade, o interesse público e a separação dos poderes.
Se a moda pega, pensa, filhos ou parentes de presidentes permaneceriam, ao
talante da vontade dele, imunes à lei.
O presidente da
República tem o poder de dizer quem deve ser condenado ou não pela Justiça? Não
é muito poder? A Constituição prevê esse instrumento, de atribuição do chefe do
Estado, para extinção de punibilidade de um criminoso. Um direito. O problema é
que o constituinte nunca imaginou que essa prerrogativa pudesse servir a um
interesse individual ou a afronta a um outro poder da República. Sonhou que
seríamos governados por estadistas, desapegados de arroubos intimistas e
imaturos. Houve, no caso, a meu ver, como professor, um abuso de direito,
merecedor de reequilíbrio pela justiça.
Partidos políticos já
se manifestaram com a intenção de atacar com um recurso no STF o decreto do
presidente que concede o indulto ao deputado Daniel Silveira. O que acontece se
o STF suspender o decreto do presidente? A meu sentir, o Supremo pode
reagir, no campo jurídico, dado o nítido desvirtuamento do instituto. O delito
cometido pelo hoje ex-deputado -- que, precisamos esclarecer, não foi apenas de
injúria a um membro da corte, mas de incitação à violência e ataque às
instituições que nos garantem as liberdades -- está entre aqueles insuscetíveis
de perdão, já que o atentado contra o estado democrático de direito, cometido
por ele, é tão grave que a nossa carta preexclui de apreciação, como fez com
crimes hediondos ou equiparados a estes, terrorismo, tortura e tráfico de
drogas . São crimes contra a ordem constitucional. Imagina: se dependesse da
incontinência verbal desse ex-deputado, ou não faríamos essa entrevista ou iríamos
para a cadeia, com a publicação dela, como ocorria no período do AI-5, da
ditadura militar, com que ele ameaçou.
O indulto livra o
deputado da inelegibilidade? O indulto individual, a graça, só atinge às
penas: a privação de liberdade e a multa. Deixa intactos os efeitos secundários
da condenação, penais e extrapenais. O condenado, por esse motivo, deve perder
o mandato e ficar inelegível por oito anos.
Acha que a candidatura
dele vai provocar outro debate jurídico? Impossível a candidatura, vez que
a Súmula 631, do STJ, pacificou que "o indulto extingue os efeitos
primários da condenação (pretensão executória), mas não atinge os efeitos
secundários, penais e extrapenais".
Se o STF determinar a
execução da pena de prisão será criado um impasse? Em direito, de uma
fundamentação decorre uma conclusão somente modificável por fundamentação
diversa. Se o Supremo compreender que se trata de abuso de direito ou de
desvirtuamento da finalidade do instituto, e anular o decreto do Executivo,
determinará o cumprimento de pena pelo condenado. Como deve ocorrer nos estados
democráticos de direito, a última palavra deve ser a sempre do Judiciário.