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O primeiro amor

O primeiro amor

Em tempos de guerra ou de paz, é muito importante que nada nos desvie daquilo com que nos comprometemos um dia. A essência de quem somos é o nosso compromisso com o que amamos fervorosamente. João advertiu no livro do Apocalipse: "Contra você, porém, tenho isto: você abandonou o seu primeiro amor. Lembre-se de onde caiu!" Para quem não teve os olhos cegados pela pandemia, é fácil perceber que as doenças que aconteciam antes da covid-19 não cessaram. Enchentes, desabamentos, acidentes aéreos e corriqueiras hemorroidas seguiram existindo, e pasmem: nenhuma relação com a pandemia, apenas assuntos menos noticiados.


Nesse interregno conhecemos a doutora Mauricia Cammarota, cirurgiã pediátrica treinada pela Universidade de Brasília. Escolhemos ela, entre muitos no Brasil, para corrigir uma malformação renal no nosso pequeno filho de apenas três meses de idade. Quando eu ainda era estudante de medicina na mesma universidade, ela já era uma médica residente de grande destaque entre seus pares, e de futuro promissor. Vinte e quatro anos depois, encontrei Mauricia mais madura, mas com a mesma paixão que todos vimos em seus olhos no milênio anterior.


Mauricia mantém até hoje a mesma técnica que aprendeu na universidade, de conversar pausadamente com a família de seus pacientes, transmitindo segurança e assertividade — o que mais se espera de uma pessoa a quem você entrega seu filho desacordado, para ser manipulado por longas horas de aflição parental. Mauricia conserva o mesmo passo firme e veloz de outrora, estuda e se atualiza de forma periódica, segue os protocolos e nunca se perde em meio à intervenção esquizofrênica de pais médicos ou de qualquer um que atravesse seu caminho. Ela analisa os exames complementares de forma criteriosa e atenta. Não é dogmática e alia a vasta experiência ao bom senso e aos princípios sob os quais foi solidamente formada.


Mauricia avalia pessoalmente cada criança indefesa, a todo instante; não terceiriza isso para nenhuma equipe, que poderia não dispensar o mesmo carinho. Como uma artesã, ela corta, rebate músculos, sutura e segue seu bebê até que ele esteja sorrindo novamente no colo da mãe. Tudo de inesperado pode acontecer, mas dentro da sua cabeça, podemos vê-la, de forma sistemática, revendo seus princípios, seu primeiro amor: a medicina. Sem redes sociais, sem grande estratégia promocional, ela salva o rim de uma criança sem alardear. O tempo e a vaidade não a transformaram, e temos convicção da razão pela qual ela foi a nossa eleita.


Esquecer o fervor, a dedicação e a missão seja talvez o maior erro, ao longo da vida. No último carnaval, uma nova e cansativa discussão sobre quais festas deveriam ser canceladas chegou a ser nauseabunda. Houve estados em que apenas bailes com fantasias estavam proibidos, em outros festas dançantes; em outros, o uso da serpentina... Por que retornar a uma nova discussão que apenas distorce o que especialistas já orientaram? Com alta circulação do vírus, deve-se evitar a aglomeração de pessoas, estejam elas ouvindo rock ou samba, simples assim. A cada instante, gestores despreparados tentam criar regras e normas equivocadas que se contradizem, em um país lamentavelmente tão desinformado, e duramente sequelado.


O mundo precisará cada dia mais de pessoas que sejam fiéis ao seu primeiro amor. Machucados e desmonetizados por uma grande pandemia, não é hora de esquecê-la ainda, desviando nosso foco para uma guerra, sobre a qual, inclusive, pouco entendemos. É preciso ser estratégico, primeiro, dentro de casa, antes de sê-lo lá fora. As mesmas regras sanitárias já criadas para as doenças de transmissão respiratória precisam ser fortalecidas, e a elas agregadas uma forte e persistente campanha de vacinação global contra a covid-19. Qualquer discurso alternativo apenas nos coloca em maior vulnerabilidade bélica. Precisamos de um país com mais Mauricias, com mais hard do que soft skills, que propagandeiem menos e resolvam mais.


João, o Evangelista, concluiu assim seu versículo apocalíptico: "Arrependa-se e pratique as obras que praticava no princípio". Em tempos de guerra ou de paz, e em tempos eleitoreiros, São João mostra-se visionário e atemporal. Quem é fiel ao primeiro amor nunca cai, seja ele crente, médico ou político.



Marcus Lacerda - Médico pela Universidade de Brasília e infectologista da Fiocruz Amazônia – Correio Braziliense


  

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