Aos poucos nós, sobreviventes,
vamos vendo a vida que a pandemia nos roubou nos últimos dois anos. À parte a
tragédia de amigos e queridos perdidos, um pedaço da existência de cada um
ficou em uma espécie de câmara criogênica, com sentimentos e sensações
suspensos, naqueles dias em que ficamos tão estupefatos que não medimos a
gravidade de ficar sem liberdade de fazer o que der na telha.
Era a ditadura do vírus, que devia
servir de exemplo para muita gente que fala tanta bobagem, em busca de um
salvador, ou pior, de um tutor para – num pensamento torto – tomar conta da sua
vida, naquela preguiça de quem faz tudo para não ter que lutar por nada. O
vírus passou; as ideias de jerico não passam nunca.
Por causa do vírus fiquei meses
sem ir ao estabelecimento do Silvio Ronaldo, o que privou meu paladar do melhor
sarapatel que se pode sonhar, além de outras iguarias brutas como mungunzá
salgado, maxixe com nata, rabada, costela e tudo o mais que nos entope as
carótidas e enche a alma de satisfação.
Silvio finge que tenta ser
politicamente correto ao oferecer um prato de salada em pedaços, como uma pizza
alta, mas só de folhas e algumas rodelas de tomates. Mas é só para enganar o
santo. Logo em seguida traz a feijoada, com muita orelha, pé, rabo de porco e
pouco paio. E tudo volta à harmonia, ainda mais que o acompanhamento é a
cerveja mais gelada que se pode encontrar, quase no ponto do congelamento, que
entorpece as papilas gustativas e rasga a goela.
A volta foi festejada. Uma
abrideira, papo curto porque o trabalho é muito, comida na mesa, a qualidade de
sempre, o mesmo ambiente. Mas quem era aquela gente toda? A freguesia mudou.
Mais engravatada de um lado, mais descolada de outro, o estabelecimento se
transformou, mas por mérito do novo público que descobriu o lugar, já que nada
foi alterado, nem mesmo as desconfortáveis cadeiras duplas que exigem um
fornido par de glúteos para segurar a pressão no cóccix.
O lugar já foi bem mais acanhado.
Não tinha nem placa e a referência era a padaria que vendia material de
construção na esquina superior da comercial da 114 norte. E tinha uma gama
curiosa de frequentadores. A conversa era controlada porque Silvio não gosta de
confusão; no primeiro sinal de polêmica ele já interferia – botou muito freguês
para correr; mas os sem-vergonha sempre voltavam.
Mulher não ia porque só havia um
banheiro, mas esperto como todo comerciante cearense – e há algum que não seja?
– Silvio logo notou que as esposas é quem tiravam os maridos do bar. Depois de
poucas horas, começava uma sinfonia de telefone convocando as caras metades
para outro canto. Foi a senha para a primeira reforma: a construção de um
banheiro feminino.
Foi o início da transformação,
consolidada com a sedução das crianças, atraídas pela melhor batata frita que
se pode comer, já que ele se recusa a comprar o tubérculo cortado e congelado;
no mercado, seleciona as melhores batatas, descascadas na hora e fritas em óleo
fervendo, o que deixa o miolo cozido e o exterior crocante.
Silvio é bem-humorado como um
major endinheirado, mas cumpre muito bem o papel de turrão, necessário para se
administrar um local que vende espíritos – que é como os chiques chamam as
bebidas alcoólicas. No dia em que um sujeito puxou o violão para cantar, ele
interveio: “Você aceita pedidos”. O boêmio aquiesceu: “Claro que sim”. Levou um
bate-pronto: “Então para de cantar”. Como se vê é um lugar em que os
casados se sentem em casa.