Cheguei no tempo da seca, julho, com céu claro, sem nuvens, e o frio cortando a pele. O cerrado desenhado em cores ocres lembrava o agreste nordestino. Um horizonte aberto para todas as bandas da Terra. Havia uma cerimônia de adeus. O papa João Paulo II deixava a cidade. Brasília oferecia uma proximidade não íntima com o poder. À nossa mão ficavam os candangos circulando pela Rodoviária. Essa era a vida.
Comecei a entender a proximidade
remota com o Poder nos primeiros instantes. Tudo era estranho e íntimo. Ruas
imensas e largas, arborizadas, se estendiam no infinito. Havia a utopia de uma
cidade marcada pela igualdade social. Era começo da década de 1980, a urbe
tinha 20 anos, eu 18, e o país vivia uma ditadura, mas rasgos de liberdade eram
possíveis, como caminhar à noite nas ruas desertas. Voltando de um bar, no
longo da noite, encontrei na encruzilhada da W3 Norte com a via N2 um despacho
de macumba. Tinha o necessário para servir ao santo: bebida, cigarro, comida,
flores e outros objetos ritualísticos. Segui.
Aprendi que Brasília não tinha
esquinas. Sem esquinas não se faz encruzilhadas. No entanto, diante de mim se
postou o cruzamento de dois caminhos. O gesto da cruz, dois eixos que se cruzam
em linha reta, a encruzilhada que fez nascer o Plano Piloto, ensinou Lúcio
Costa, e também nosso sincretismo.
Riobaldo, o mítico herói de
Guimarães Rosa, defendia o muito rezar e frequentava todas as religiões: “bebo
água de todo rio”. Aqui se bebe água de todo rio. Não somos obrigados a crer,
mas os templos, pontos de reflexão, estão abertos. A serenidade da Catedral, a
placidez da Igreja de Dom Bosco e o regaço da igrejinha de Nossa Senhora de
Fátima nos oferecem mansuetude necessária à introspecção. Por natural, tendemos
à quietude, a olhar o horizonte e buscar os caminhos que nos livram da
angústia, mesmo aos ritmos da cidade: rock, rap, forró. Vivendo as
contradições, colhi lições.
Amadurecemos juntos, eu e a
cidade. Éramos jovens e imaturos. Acreditávamos viver à margem do feliz. A
vida, no entanto, nos mostrava ter algo além do céu intenso. Vencer, respirar
eram condicionantes que nos tiravam da contemplação. Sem saber, estávamos
presos ao destino dos pioneiros, tínhamos pressa e pouco tempo. A cidade ainda
se construía e íamos com ela. Nos apossávamos de suas Asas. Gritávamos por
eleições diretas, direito ao voto, construir o futuro com as unhas, mas tudo se
frustrava nas patas do cavalo de um general. Alimentávamos outros sonhos,
rezávamos por Tancredo morto, acendíamos novos fachos, novas lutas. Ficávamos
nas ruas ouvindo choro e rock, escutando as histórias de quem chegava.
Uma amiga vinda do Recife contou o
que mais a encantou: “ter água no chuveiro todas as manhãs”. E a gente entendia
que nos pequenos prazeres se escondem o sentido da vida e o impulso para as
grandes lutas. Somos berço de três torrentes: São Francisco, Paraná, Tocantins.
E superamos uma crise hídrica bebendo o leito do Paranoá. Trabalhando e
reunindo narrativas, segui.
Pernambucano, numa composição bem
brasiliense, casei com uma gaúcha. Tivemos filhos e neto. Construímos uma casa.
Num bar, uma propagandista me pediu para preencher um cadastro: nome, telefone,
as coisas de praxe. “O senhor é casado?” “Sim.” “Há quanto tempo?” “Trinta e
oito anos.” “Nossa”, espantou-se a moça. Voltei para a cerveja. A moça não
entende que o sentido de Brasília é o perene. Aqui, nada passa em vão, nem
sequer a gente. Numa conversa, tentei iniciar um assunto: “Quando escolhi morar
em Brasília...” “Ninguém escolhe morar em Brasília. Ela é que nos escolhe”,
cortou um amigo dado ao misticismo. Eu que não creio, preferi continuar
acreditando que um dia escolhi viver aqui.
Há 42 anos vivo entre estes espaços.
Mais de dois terços da vida corri pelo Planalto. E sempre achei isso
extraordinário. Hoje, percebo que minha história é comum, é a mesma de quase
todos que aqui chegaram lá por 1980 e resolveram ficar. E ficando reacenderam
as utopias de quem cortou o cerrado em cruz. A quem dizia ser um absurdo
construir uma cidade no deserto, Juscelino respondia: “Absurdo é o deserto”.
Vencemos o deserto, mas ele nos
deixou sua solidão. Por isso, somos contraditórios. Esperamos a florada do ipê
construindo casa nova, contemplamos o pôr do sol preocupados com os afazeres de
amanhã. E contamos nossas histórias para provar que temos lirismo e poeira na
alma.