A doutora Nise da Silveira teve o nome vetado pelo presidente da República para figurar no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, por indicação do Congresso Nacional. Talvez seja oportuno lembrar quem é Nise da Silveira, uma das pessoas mais extraordinárias que o Brasil já forjou. Em tudo, essa mulher alagoana de poderosos radares de sensibilidade foi guiada pelo afeto.
Ao trocar os eletrochoques pelos pincéis, a insulina pela modelagem, a violência pelos animais-terapeutas, as verdades esclerosadas da psiquiatria, ela realizou uma pequena revolução no tratamento da esquizofrenia. A rebelião contra a psiquiatria começou no dia em que ela ia aprender a aplicar choque elétrico com outro médico. Só de assistir a convulsão do paciente, ela sentiu horror e se recusou a apertar os botões. Estava comprada a briga contra a psiquiatria oficial.
Ela sempre enxergou pessoas onde os médicos viam pacientes. O único espaço que sobrou para Nise trabalhar foi o de Terapêutica Ocupacional. Na época, era um local tão desprestigiado que nenhum médico se dignava a aparecer por lá.
O setor era administrado pelos serventes do hospital. Mas foi lá que a doutora Nise ensaiou uma revolução humanizadora nos métodos da psiquiatria, muito antes da emergência do movimento da antipsiquiatria irromper na década de 1960, sob o comando do italiano Franco Basaglia e do inglês Ronald David Laing.
Esse trabalho convergiu para a criação do Museu do Inconsciente, centro de estudos e pesquisas que se tornou referência internacional. Além do interesse científico, Nise revelou grandes artistas: Emygdio de Barros, Rafael ou Fernando Diniz. Octávio, um um dos pacientes de Nise disse: "A esquizofrenia é uma doença em que o coração fica sofrendo mais do que os outros órgãos. Então ele fica maior e estoura." Muito próximo do que escreveu o poeta russo Maiakóvski: "Comigo a anatomia enlouqueceu/Eu sou todo coração".
Impossibilitados de se comunicarem com as palavras, os pacientes se expressaram com as imagens e com as modelagens escultóricas. E a doutora Nise interpretou esses sinais do inconsciente de maneira magistral em muitos livros e documentários. Na perspectiva humanizadora, ela introduziu, com muito sucesso, a presença dos chamados animais-terapeutas. Percebeu que os pacientes melhoram o estado psíquico quando interagiam com os cães ou os gatos.
Ao longo de uma vida de 96 anos, Nise conviveu com uma legião de gatos. Ficava irritada quando alguém diziam que eles eram pérfidos, arredios, oportunistas e traiçoeiros. Sua liberdade, sim, é que ofende o homem. Nos tempos em que ficou presa em uma casa de detenção por motivação política, uma gata lhe minimizou os sofrimentos. Que lhe importava se estava no pátio de uma casa de detenção ou no terraço de uma grande mansão? O que importa se o espírito é livre? Nise nunca se esqueceu da lição.
Para ela, a relação afetiva era tudo. Tive o privilégio de entrevistá-la quando já se encontrava no fim da vida. Perguntei a ela porque, apesar de tantas pesquisas, a psiquiatria oficial permanecia tão desumana. Ela respondeu que a psiquiatria oficial era um muro muito sólido e ainda seria preciso muita luta para humanizá-la.
O veto à homenagem para a doutora Nise não a desmerece; desmerece quem vetou. Com ou sem reconhecimento oficial, a doutora Nise é uma grande brasileira, uma brasileira cidadã do mundo, que nos comove, nos inspira e nos engrandece. Como escreveu o poeta Armando Freitas Filho: "Medalha no seu peito/E no meu o coração".