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Amores possíveis: os kalungas Jacinto & Marli

Amores possíveis: os kalungas Jacinto & Marli


Ainda são 10 da manhã e o sol já está bem quente na praça principal do povoado de Vão de Almas, município de Cavalcante, a 280km de Brasília. Quatro homens surgem numa esquina. Caminham de braços dados como se fossem começar uma exibição de dança ou liderassem uma passeata.

Um deles está de terno, os outros de camisa e calça social, todos são negros. O de terno é alto, tem músculos bem definidos, olhos castanhos bem claros, cabelo cortado à máquina quatro, nuca muito bem desenhada. Está de óculos escuros.

Os quatro atravessam a praça em direção à capela. Entram na igreja singela, centenária, de adobe e amianto, paredes descascadas e trincadas. Ajoelham-se, fazem o sinal da cruz e voltam-se de costas para o altar.

Menos de dez minutos depois, da mesma esquina surge uma moça de rosto anguloso, também negra. Está vestida de noiva. Vestido branco até o tornozelo, enfeitado com miçangas prateadas. Dois círculos de arame, como bambolês, deixam a saia bem rodada. Um véu curto cai da grinalda.

A moça usa uma gargantilha de pedras prateadas e reluzentes. Os brincos seguem o mesmo modelo. Nas mãos, um buquê de delicadíssimas rosas cor-de-rosa artesanais. Cada flor é menor que um chiclete babalu e são todas impecavelmente iguais. A mãe e a madrinha acompanham a moça.

Estão todos muito sérios. Há razão para isso. Fazia muito tempo que o Vão de Almas não assistia a um casamento de verdade, com vestido de noiva e padre. “Estou aqui desde 2000 e é a primeira vez que venho celebrar um casamento”, diz o padre Jair Fernandes Valente, da Diocese de Formosa (GO).

É um casamento entre kalungas, povo quilombola que há mais de 300 anos ocupa extenso território na Chapada dos Veadeiros.

O noivo é Jacinto Rodrigues dos Santos, 21 anos, oito irmãos. A noiva, Marli dos Santos Rosa, 19 anos, duas irmãs. A igreja não está cheia, talvez porque a terça-feira da semana anterior tenha sido o dia mais importante da festa do Divino Espírito Santo e de Nossa Senhora D’Abadia, a mais importante data religiosa e festiva dos kalungas.

“Nunca tinha visto um casamento!”, diz uma garotinha para a amiga, as duas correndo para subir no banco de cimento e ver a cerimônia bem de perto.

Os noivos se conhecem desde criança. Pertencem à mesma comunidade. Namoraram durante três anos. Namoro de antigamente, de beijinho e somente só, segundo o noivo. A noiva, muito tímida, diz quase nada. Namorados kalungas não se beijam em público. Mantêm-se a uma distância respeitosa. Os dois conservam costumes ancestrais.

Ela mora com os pais e ele saiu do Vão de Almas há pouco tempo para ir trabalhar em Alto Paraíso. Nesse tempo de namoro, passaram até oito meses sem se ver, por conta da dificuldade de acesso ao Vão de Almas. (Em 2006 só se chegava lá em lombo de burro ou a pé).

Já existem muitos kalungas aculturados pelos hábitos mais liberais das cidades. E foi o recato de Marli que levou Jacinto a pedi-la em casamento. “Ela não é menina de bagunça. Não fuma, não bebe”. E, aos olhos do futuro marido, a noiva tem uma outra grande qualidade: presta atenção ao que ele diz e é atenciosa com todos.

Marli faz a 8ª série e Jacinto estudou o suficiente para aprender a assinar o nome. Ela acha que 16 anos é idade boa para casar. Portanto, está três anos mais velha do que considera o momento certo para o casamento.

Dona Edivanir, mãe da noiva, é ainda mais tímida do que a filha. Não sabe dizer a idade. Pergunta ao marido, senhor da casa e da família. Santana dos Santos Rosa, 47 anos, seu Neco, pai da noiva, imperador da festa do Divino do ano passado e alferes neste ano, diz o que pensa sobre o casamento: “Na minha mente, ele tem de andar no direito dele e a mulher tem de andar no direito dela. O marido é o segundo pai da mulher e a mulher é a segunda mãe do marido. Eu conto com ela e ela, comigo”.

Coube a seu Neco comprar o vestido da noiva e as bebidas da festa. O barraco mais parece uma distribuidora de bebidas, tantas as caixas de cerveja, os galões de 4,5 litros de pinga e garrafas de 2 litros de tubaína. O sogro de Jacinto conta que no ano passado gastou R$ 3 mil em bebida para os festeiros. “Mesmo que a gente gaste, aceita a emoção de bom coração. Gastei tudo isso, forante o que não contei”.

Depois que o padre perguntou aos noivos se eles aceitavam um ao outro como marido e mulher e se prometiam ser fiéis na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, se amando e se respeitando todos os dias de suas vidas, e que os dois puseram as alianças, chegou a hora do beijo. Que não houve. Apesar do estímulo de um convidado branco (“beija, beija”), deram-se somente um desajeitado abraço.

O casamento só se consumará em dia ainda não marcado. “É quando eles me entregar ela”, diz Jacinto. “Hoje você recebe a sua mulher”, dirá o sogro, segundo palavra do genro. Jacinto diz que já teve experiências sexuais. “Não ia casar mesmo, aí dormia junto”.

Jacinto faz serviço de roça numa chácara em Alto Paraíso. Tem planos de construir uma casa, comprar umas cabeças de gado. Não sonha com um carro. “Se quebrar as peças, é muito caro, não dou conta de arrumar”.

Até aos 10 anos, ele nunca tinha visto um ser humano de outra cor que não a sua. “Pensei que só existia gente de cor normal”. Assustado, perguntou ao pai: “Aquele povo ali é de onde?”. O pai respondeu: “É de nascença. Tem gente de toda cor no mundo”.

Entrou num carro pela primeira vez aos 15. “Pensei que a Terra estava rodando. A hora que apeei fiquei tonto”. Sabendo agora que o mundo se estende para além dos paredões de pedra do Vão de Almas, Jacinto quer uma vida melhor para o seu povo. “O pai contou que branco batia no preto, fincava o chicote, punha arame na cabeça, mandava fazer cerca de pedra no meio da serra. Agora não está muito bonzão, tem de melhorar mais um pouco”.

É atrás dessa melhora que Jacinto se juntou a Marli. A dois talvez seja mais fácil.

Entre os meses de junho e julho de 2006, o Correio Braziliense publicou uma série de reportagens que contavam histórias de amor entre excluídos. A série ganhou o Prêmio Esso Nacional de Jornalismo 2006. De vez em quando alguém me pede para mandar cópia das matérias. Convidei @carmensanthiago para ilustrar as matérias e ela, pra minha imensa alegria, topou. Revisei minimamente os textos, mantendo todas as informações das matérias tal qual foram publicadas em 2006. As histórias estão sendo republicadas às terças-feiras, de 15 em 15 dias.


Conceição Freitas – Correio Braziliense


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