Todo mundo chama de Biscoito a vendedora de biscoito que passa na rua
gritando “ó o biscoito quentinho”. É negra, miúda, não mais de 40 anos.
Religiosamente passa aos sábados pela manhã carregando dois sacos plásticos
enormes de petas, um pendurado no ombro, o outro, no antebraço. Não gosta de
foto nem de falar muito de si mesma, mas ontem ela me perguntou se eu sabia de
um lugar que conserta celular. Uma freguesa deu a ela um aparelho trincado até
que ela consiga comprar um novo porque o dela morreu.
Outro dia, na farmácia, o cliente perguntou pelo preço do remédio
genérico e do “de marca”. Entre o de R$ 9 e o de R$ 22, ficou com “o mais
gostoso”, o mais barato. O outro pediu ajuda ao balconista porque não conseguia
buscar uma informação no celular. “Moça, sou da roça, só tenho telefone no
telefone”.
Nessas noites frias, vizinhos fazem fogueira na calçada e uma delas
conta de uma vez que acordou e viu que a tia-avó velhinha não aparecia na
cozinha com a caneca pedindo café. Chamou o sobrinho e pediu: ‘Vai ver como
está a sua vó”. O garoto gritou de lá: “Tia, corre”. A mão espalmada flutuava
sobre o nariz e a boca da velhinha pra ver se ela ainda respirava: “A avó não
tá mais aqui”.
Passa uma desconhecida pela rua e uma das vizinhas comenta baixinho,
meio desdenhosa: “Que mulher enxaguada”. E eu só anotando essas maravilhas que
ouço nas quebradas, tão surpreendentes pra os meus ouvidos de classe média. A
vizinha que mora ao lado do serralheiro conta que passou o dia com a mãe que
vive num abrigo de idosos em Águas Lindas. A mãe de 91 anos, de corpo frágil e
cabeça forte, ouviu de um jovem cuidador:
— Dona Francineide, a senhora está muito bonita hoje.
— Tô, meu filho? Então me leva pra você.
Depois das risadas, uma diarista diz para a outra, bem baixinho: “Segura
aí que pra semana te dou a minha parte do seu cartão, pode cobrar os juros. A
patroa disse que vai dobrar meus dias de faxina”.
Dia desses, reclamei com um amigo pedreiro que ele não me deixava
argumentar. Que quando eu começava a falar, ele me cortava, como se eu não
tivesse nada para dizer sobre o serviço que ele ia fazer. E ele: “Tá certo,
pode molhar a palavra”. Ou quando ele me diz uma coisa e eu rebato no mesmo
instante: “Levou quem trouxe”, ele responde, reconhecendo que merecia a
resposta automática e bruta.
Todas as manhãs, bem cedinho, na igreja evangélica colada na
distribuidora de bebidas, há sempre uma mulher rezando, ajoelhada de frente
para a parede, as mãos segurando a cabeça curvada, em absoluto silêncio. Não há
mais ninguém, só ela no pequeno salão de duas portas e cadeiras de plástico.
Antes das seis da manhã, já se vê mulheres e homens na rua pegando o
caminho do ponto de ônibus. Meninos empacotados, como embrulhinhos de pano, nos
braços das mães ou nos carrinhos de bebê indo para a creche. Crianças maiores
vão na garupa das bicicletas, que na quebrada é meio de transporte, sem
capacete e com roupa de trabalho.
O casal que estendia roupas usadas no gramado atrás do ponto de ônibus
agora vende de um tudo: panela, tênis, boneca, prato, forma de bolo, amolador
de faca, sanduicheira de esquentar no fogão. “Se eu tivesse mais (faz o gesto
de dinheiro com os dedos), enchia essa grama de treco, tá todo mundo na pindaíba”.
Quinze quilômetros separam a minha quebrada do Plano Piloto, 15 mil
quilômetros, 15 milhões de quilômetros de distância entre um Brasil e o outro.